domingo, 26 de outubro de 2008

Jornalismo literário, real e possível

A idéia é que este blog seja um espaço para o jornalismo literário, real e possível. Ele surge da necessidade de praticar e dividir experiencias neste sentido. Para começar nada melhor do que uma entrevista com Edvaldo Pereira Lima, um dos expoentes dessa área. A entrevista originalmente foi publicada no dia 4 de outubro no jornal O Estado (de Mato Grosso do Sul), no qual trabalho. (veja a publicação ao lado)

Edvaldo me atendeu por telefone, foi simpático e se mostrou bastante acessível.

Entrevista

A arte de contar o real

Edvaldo Pereira Lima, um dos maiores teóricos do jornalismo literário, vem à Capital


Aos 57 anos, o senhor calvo e de cabelos brancos é professor, jornalista, escritor e reúne muitas histórias ao longo de uma carreira consagrada. Autor de livros obrigatórios para interessados em jornalismo como "O Que é Livro-Reportagem", Edvaldo Pereira Lima estará em Campo Grande na terça-feira (7) para participar do 3º Encontro de Jornalismo da Uniderp. Na ocasião, ele vai debater sobre a arte da narrativa da vida real, vertente do jornalismo que adota técnicas da literatura. Na Capital, Edvaldo lança ainda a quarta edição do livro "Páginas Ampliadas". O jornalismo literário é a paixão e o objeto de estudo daquele que foi um menino que escrevia histórias de ficção em cadernos e hoje tem como objetivo propagar essa vertente mais "agradável" do relato das histórias do cotidiano.

Confira abaixo a entrevista com Edvaldo Pereira Lima.

O Estado – A relação do jornalismo com a literatura é bastante antiga. O que o senhor define como Jornalismo Literário?
Edvaldo – Alguns acreditam que tudo tenha começado com o "novo jornalismo" americano. Mas começou, na verdade, no final do século 19, quando repórteres ingleses saíram para cobrir uma guerra na África do Sul. Os repórteres viram que a guerra é caótica, e, por isso, é preciso ter um texto forte para cobri-la. Eles resolveram importar técnicas narrativas da ficção e usar ferramentas literárias na descrição da realidade. Perceberam que o texto mais curto, que caminha para o lead, tem a função de informar rápido, mas é limitado para situações como guerra. Em "Os Sertões", Euclides da Cunha inspira esse jornalismo contundente. João do Rio foi o primeiro profissional do Brasil a sair para a rua para entrevistar pessoas, participando do espaço delas para tentar entender o que acontece ali. Na década de 20, já havia jornalismo literário nos Estados Unidos. O grande segredo do que existe até hoje é contar histórias. É a arte voltada para relatar o real com propriedade. Na década de 50 já estava estabelecido com esse nome porque importou técnicas da narrativa, de uma escola chamada realismo social. Isso foi sendo aperfeiçoado, a redescoberta do realismo social foi levada para prática do jornalismo norte-americano. Tom Wolfe foi um grande profissional dessa área. Foi o primeiro a trabalhar com a técnica do fluxo de consciência que reproduz o pensamento caótico do personagem. James Joice fazia isso em suas histórias, reproduzindo a confusão de pensamentos do personagem. Isso atingiu tal grau que as produções podem ser entendidas como literatura de boa qualidade.

O Estado – É possível utilizar o jornalismo literário no dia-a-dia?
Edivaldo – Sim, mesmo com uma equipe reduzida você manda um repórter cobrir a pauta, para fazer o básico do jornalismo convencional e coloca outro repórter do jornalismo literário para procurar ângulos diferenciados. Uma das marcas do literário é a humanização. Na matéria do dia seguinte você terá o relato e pelo menos um box mais humanizado. O Zero Hora (RS) faz um pouco essa produção. O Diário da Manhã (GO) fez um experimento contando histórias de pessoas que escrevem cartas para o Papai Noel. Foi uma série que marcou muito, foi modesto, mas eficiente. Mesmo com condições difíceis operacionalmente, é possível fazer isso. A internet é um tremendo veículo para utilização do jornalismo literário. No Brasil há um vício de que na internet só pode colocar texto curto. Se você souber usar recursos como ilustração, som, fotos, o texto pode ser grande, narrativo, interessante, sabendo usar o jogo do meio e dividindo a matéria em capítulos. É possível fazer jornalismo literário na televisão e no rádio também. A narrativa do real, do cinema documentário, tem uma produção baseada nas figuras humanas muito próximas do jornalismo literário. Eduardo Coutinho e João Moreira Sales são dois expoentes dessa prática.

O Estado – O João Moreira Sales é editor da revista Piauí, que ao lado da Brasileiros, configuram como novas publicações que adotam o jornalismo literário em seus textos. Elas são os grandes expoentes dessa vertente hoje?
Edvaldo - Temos alguns periódicos que praticam isso. A Brasileiros nasceu com essa idéia. É a revista que tem mais consistência e regularidade no jornalismo literário. Na Piauí, eu não sei se é a proposta fazer jornalismo literário, mas tenho impressão que eles têm uma política editorial de textos mais opinativos, como os que eram feitos em jornais nanicos como o Opinião e o Pasquim. Seus textos ora são mais típicos do jornalismo literário ora são mais um jornalismo de opinião de qualidade. A Roling Stone Brasil também adota o jornalismo literário. Na Época trabalha a Eliane Brum, que eu coloco entre as cinco melhores profissionais que praticam o jornalismo literário. Ela não dá espaço só pela celebridade, coloca em primeiro plano os anônimos como maneira de compreender o mundo. Na Trip, o Artur Veríssimo pratica uma vertente do jornalismo literário chamada Gonzo. Ele faz um trabalho muito bom dentro dessa revista, de um jeito engraçado. Há também experimentos no Correio Braziliense (DF), O Estado de São Paulo e até na Folha de São Paulo, que tem matérias curtas, mas experimenta textos mais literários no Obituário. Há matérias humanizadas e experimentos na editoria de Esporte do jornal Gazeta do Povo (PR). Isso mostra que o jornalismo literário pode ser aplicado em todas as áreas de cobertura e ser colocado em circulação para todo tipo de público. O jornalismo literário está presente ainda na produção de livro-reportagem, principalmente na biografia, proporcionando um texto envolvente, que ganha em qualidade.


O Estado - Qual espaço o jornalismo literário ainda precisa conquistar?
Edvaldo - Precisa conquistar presença significativa nos periódicos. Na medida em que se tornar mais conhecido, vai adaptar prática em condições peculiares dando salto de renovação. Isso assegura e aumenta o número de leitores. Os jornais impressos têm de fazer isso, precisam fazer uma a autocrítica. Não podem ficar correndo atrás do prejuízo dando notícia do dia-a-dia que já é dada pela TV e internet. O papel do jornal diário é fazer o que os outros têm mais dificuldade: matérias com profundidade, humanização, narrativa e contar histórias. O leitor prefere texto preparado de maneira narrativa, que conta uma história. Isso fica mais fácil de assimilar, como as histórias da infância.

O Estado – Como e quando decidiu ser jornalista?
Edvaldo - Quando garoto gostava muito de escrever, comprava cadernos e criava histórias de ficção. Aos 12 anos tinha oito cadernos com histórias. Aos 14 anos criei um jornal mural na escola que freqüentava. Morava em Três Marias (MG), quando elegeu-se o primeiro prefeito da cidade, que era o jornalista Flávio Ferreira de Belo Horizonte. Eu queria entrevistá-lo e bati na porta dele. Ele achou surpreendente um garoto como eu ter esse interesse. Ficou entusiasmado e me deu um livro sobre jornalismo. Quando eu tinha 15 anos, surgiu a "Realidade", principal revista do jornalismo literário. Isso me entusiasmou muito. Com 17 anos, fui morar na Costa Rica com um casal de americanos. O dono da casa era vice-editor de um jornal em língua inglesa. Eu trabalhava entregando o jornal. Até que fui incentivado a produzir os primeiros textos em inglês. Passei dois anos no exterior entre a Costa Rica e a Europa.

O Estado – Nessa época já pensava em cursar jornalismo?
Edvaldo – Quando voltei não tinha documentação como cidadão brasileiro adulto. Tive de ir para Brasília, junto do meu irmão, para regularizar isso. Depois de um ano me transferi para São Paulo. A Cásper Líbero só teria vestibular para o curso de jornalismo dali a seis meses. Como sempre gostei de viajar, resolvi economizar tempo e fazer Turismo na faculdade Morumbi. Nessa época fiz amizade com o Mário Prata, que era editor do caderno de Cultura do jornal Última Hora. Ele me convidou para escrever no caderno. A gente produzia contos e publicava em mimeógrafo. A faculdade de Turismo tinha foco grande em administração de empresas e eu tinha talento com a escrita, vi que não era minha praia. Depois, acabei sendo aceito no mestrado em Ciências da Comunicação da USP e fui convidado para ser professor de Redação, na Faculdade de Turismo no Morumbi. Ao mesmo tempo, colaborei com a Folha (de São Paulo) e Última Hora. Após isso, fui lecionar na Cásper Líbero e só então cursei jornalismo na Universidade Metodista, em São Bernardo do Campo.

O Estado – Como foi sua carreira como jornalista?
Edvaldo – Planejei minha carreira para que não se limitasse na área educacional. Era professor da USP, mas queria também me aproximar da redação, tentando unir duas coisas. Viajar e escrever. Me candidatei a trabalhar na revista de turismo Pan Rotas, que não é vendida em bancas, mas é a mais conhecida dos profissionais do setor. Fui como repórter e depois de três meses virei editor. A revista estava em uma fase em que queria textos mais narrativos, que era a minha especialidade. Foram dois anos, depois resolvi me especializar mais e fui para a área de aviação, para escrever para revista Voar. Fiz doutorado na USP e fui escrevendo livro-reportagens. Em 19 anos de carreira na USP, fui preparando vários orientandos. Alguns colegas e eu achamos que era um pouco triste o conhecimento ficar limitado a uma universidade e quisemos trazer isso para pessoas que estão no mercado e que não têm interesse em uma carreira acadêmica, mas têm vontade de se instrumentalizar. A partir disso, nasceu o site Texto Vivo. Depois criamos a Academia Brasileira de Jornalismo Literário, que oferece especialização em Jornalismo Literário.

O Estado – O senhor está preparando algum livro agora?
Edvaldo – Eu sou um escritor que não gosta muito de falar o que está fazendo. Agora estou dedicado a quarta edição do livro "Páginas Ampliadas", que tem um capítulo só sobre jornalismo literário. O primeiro lançamento será em Campo Grande. Minha atenção é ajudar o livro a ganhar o espaço dele. Quero sensibilizar profissionais, estudantes à prática do Jornalismo Literário. Ajudar as pessoas a conhecerem esse jornalismo mais agradável.

SERVIÇO – www.textovivo.com.br