quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Próxima parada: Terminal Morenão

Esse lugar é o centro das contradições. É aqui que se mostra o preconceito, que se vive a diversidade, que não se respeita os direitos. É lá que se discrimina, que é possível ter alegrias e sofrimentos.

É por ali que passa a travesti indo para o trecho, a patricinha para a faculdade, o peão para a cidade, o hippie para o Parque de Exposições, a doméstica para a casa da patroa...

E acolá (bem em frente ao terminal), o grafiteiro colore o prédio abandonado, o bombeiro treina, o fanático prega, o carteiro seleciona correspondências, o mecânico se suja, o negro carrega caixas com verdura e a menina que terminou o Ensino Médio vende brinquedos.

A senhora tem a coluna encurvada, os cabelos brancos, os olhos claros. A pele branca é marcada por rugas. O único traço de beleza são os miúdos olhos verdes e a presilha que prende o coque: - É menino ou menina, ali de vermelho? – interroga, se atrevendo a interromper o silêncio e invadir o pensamento alheio.

- Menino – é a resposta. Ela se espanta e olha mais uma vez sacudindo a cabeça e sentenciando: - A gente vê cada coisa nesse mundo! Ela volta ao silêncio. A cabeça daquele que foi questionado fervilha: - É evangélica! – conclui.

O menino de camiseta vermelha tem cabelo curto, usa calção e chuteira e tem trejeitos masculinos. Está junto a um grupo de cinco meninos. Um deles é bem mais alto e se destaca do grupo. É magro e usa cabelo cumprido, boné e mochila. Eles não têm mais do que 16 anos. Outro é visivelmente extrovertido, falante e brincalhão. Ele faz “carinho” no menino de vermelho. Os cinco meninos atravessam o terminal conversando. O extrovertido massageia a mão do de vermelho. O gesto simples entre dois amigos escandaliza a velha. A camisa de uma deles denuncia: “handebol”. São meninos que jogam handebol e utilizam as mãos para as jogadas... Mas os olhos daquela senhora já estão gastos e viciados e não conseguem mais ver. No que ela enxerga, há diferença.

Cabelos exageradamente loiros, praticamente brancos. Muito escovado. O rosto exibe traços marcantes, rugas fortes e bem definidas. Com jeito sexy, se escora na barra do ônibus. As roupas são decotadas e chamativas. Tem mais de 50 anos, é negra e não poderia ser taxada de bonita. “É uma trabalhadora do sexo” – pela maneira que encara, pelo olhar lânguido e perdido, pela boca excessivamente vermelha, pelos seios apontando pela blusa sem sutiã...

O lobo-mau é fiscal no terminal. A rima não é intencional. Pedro cuida dos horários dos ônibus no Terminal Morenão, em Campo Grande. Nas horas vagas ele é o lobo-mau da peça “Chapeuzinho Vermelho”. Ele é ator, aqui é mais um que passa despercebido.

Outro usa gel, topete, tem olhos claros, cara de menino e lembra um amigo de infância. Também passa em meio as pessoas, organizando, anotando e se perdendo na multidão. Usam camisa azul e calça social preta. No meio da multidão que espera um ônibus, todos são mais um, na sua diferença e igualdade. Eu? Sou mais um deles.

Almoçando com Jesus

“Deus é fiel”, diz a placa com o nome da igreja. O prédio antigo e simples fica no Bairro São Francisco, em Campo Grande. O nome santo do bairro destoa de alguns seres que transitam por ali. A região precisa de preces constantes. Na Santa Casa, milhares de pessoas aguardam por um milagre. Assim como acontece no entorno do hospital, onde há clínicas, farmácias e lanchonetes frequentadas pelos enfermos.

Na igreja, um cartaz convida para orações diárias. Ao lado dela, um corredor leva a um salão nos fundos do templo. A calçada é irregular e já no início do trajeto uma mulher, que veste saia comprida e blusa sem decotes, parece se surpreender com os jovens que querem acessar o salão: “Vieram almoçar?”. Os dois amigos conversam animadamente e confirmam que sim.

Eles trabalham em frente a igreja e planejaram durante um bom tempo provar o “Almoço com Jesus” anunciado na placa em frente ao templo. Entram no salão, que fica nos fundos da igreja, e não parecem se abalar com o cenário de improviso. Continuam o papo sobre o cotidiano. São servidos em um prato de uma louça esmaltada, daquelas que não quebram, e quando fica velha começa a descascar no fundo. A comida parece uma papa. Nem lembram direito o que comeram. Ao lado deles, uma “irmã” puxa assunto. Ela é loira e tem a pele e a expressão desgastadas por anos vividos na rua. Recém-convertida, a mulher que já passou dos 40 anos, mistura as gírias da rua -“corre”-, com as expressões da igreja “tá amarrado, em nome de Jesus”.

Pronto. Encontraram o que queriam. Uma pessoa para bater papo e que expressa muito daquele lugar. O “Almoço com Jesus” é um chamariz para os moradores de rua, na sua maioria, usuários de drogas, irem até a igreja e se converterem. As refeições começam a ser servidas às 11 horas. Como já era meio-dia, não tinha restado mais ninguém no salão e também não tinha muita comida, mais isso era o de menos. Sentiram falta apenas das orações. Como não eram o público-alvo do almoço, os pastores parecem ter ficado intimidados com a presença deles. No entanto, os dois jornalistas sem religião não saíram do lugar sem o desejo de “vão com Deus, irmãos!”.

Agora, quando quiser almoçar com Jesus você já sabe que é só procurar a Igreja Mistérios da Fé – Deus é fiel, localizada no cruzamento das ruas Eduardo Santos Pereira e 13 de Maio, no Bairro São Francisco, em frente a Santa Casa de Campo Grande.

*Minha companheira na refeição com Jesus foi Marcelle Souza. O texto foi escrito em agosto de 2007, quando fomos a igreja.