quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Fabiana vai à escola*

— Presente! – responde a adolescente de modo firme, com sílabas atropeladas e olhos enviesados, como se desdenhasse a professora que faz a chamada. Aos 19 anos, ela usa o cabelo crespo e negro preso, calça jeans azul e camiseta branca para frequentar a turma noturna de alfabetização do Ensino de Jovens e Adultos, o EJA. Passa a aula aérea, olhando para o infinito e só nota o conteúdo apresentado quando sua atenção é requisitada.

Às 20h30 de uma terça-feira, o aprendizado de Fabiana Rodrigues caminha lento, acompanhando o ritmo dos seus colegas de sala. Eles identificam vogais, consoantes e números, mas ainda não conseguem juntá-las. Nenhum lê e escreve com desenvoltura, mas alguns, como ela, já rabiscam o próprio nome em letras milimetricamente arquitetadas e tremidas.

Na primeira aula do ano de Educação Física, a educadora utiliza a brincadeira da “batata-quente” para que os estudantes memorizem os nomes uns dos outros. Animada, a professora Vera Lúcia Gomes pede para os alunos formarem um círculo com as cadeiras e faz com que todos entrem na brincadeira – inclusive o repórter, que se atreve a permanecer em sala.

Fabiana é a primeira a dizer seu nome, dispensando-a de ter que decorar o dos colegas. A brincadeira segue e todos se divertem, inclusive a jovem, que ora acompanha o movimento da bola de meia, ora fica absorta em seus pensamentos, com o olhar perdido no fundo da sala. Ali, apesar de o recinto ser ocupado por adultos no período noturno, as cadeiras e as mesas são pequenas, ideais para crianças que estudam no local nos dois períodos do diurno. Nas paredes, letras e números auxiliam os alunos a decifrar os códigos da alfabetização.

No quadro-negro, palavras com cada letra do alfabeto estão escritas a giz, dividindo espaço com pequenas rachaduras. “Abacaxi, borboleta, caju, dado...” e a sequência completada por “zebra” seguem sem conseguir despertar a atenção de Fabiana, que tem nas mãos pirulito, um lápis e uma lata de Coca-Cola.

Veroca, como é chamada a titular da disciplina de Educação Física, interage com a turma e questiona quantos gostam de fazer alongamento. Fabiana, com a boca aberta, olha para o fundo da classe. Poucos se manifestam. Mesmo assim, a professora dá ordem que todos se levantem e ainda em círculo estiquem braços e pernas. Fabiana repete os movimentos de forma desengonçada, acompanhada pelos outros 15 estudantes de sua classe, na maioria idosos.

O sino bate e é hora da aula de Educação Artística. A adolescente e Claudinei Vieira, o professor que a auxilia em classe, sentam na primeira fila, no lado oposto à porta. “Que cor é essa?”, ele pergunta. “Vermelho!”, responde ela, sem vacilar. No caderno, pinta as formas de maneira descoordenada. Abusa da força e quebra a ponta do lápis diversas vezes. Rodrigo Viana, o professor de Artes, incentiva: “Bonito! Trabalha com muita expressão”. Enquanto isso, ela está incomodada com um "courinho" que salta do dedo mindinho, resultado da autodestruição, uma das características do autismo. Síndrome que também provoca desvios qualitativos na comunicação, na interação social e no uso da imaginação.

Na troca seguinte de professores, uma delas reclama do cansaço. Numa conversa entrecortada, a outra responde com ironia: “Vai se acostumando, que ano que vem tem mais”, referindo-se, com sorriso amarelo, implicitamente sobre o processo de entrada dos deficientes no colégio.

Tão perto e tão longe

Após um dia de trabalho, Elenir chega em casa às 18h. Tem uma hora para comer, ajeitar a bagunça doméstica e levar Fabiana para a escola. A menina passa a manhã com uma “cuidadora” e, à tarde, na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, a Apae.

Moram a apenas algumas quadras do colégio e palmilham o caminho a pé. Fabiana segue uma linha imaginária e repisa os mesmos espaços diariamente. O trajeto foi orientado pela mãe, que fica no controle para a filha não passar pelos lugares não calçados e não sujar os sapatos em dias de chuva recente. A menina caminha roboticamente à nossa frente. “Espera! Na calçada, Fabiana!”, comanda a mãe em tom de sargento de quartel.

Apesar de sempre ter estudado próximo à Escola Abel Freire de Aragão, o caminho de Fabiana foi longo até chegar ao ensino público comum ofertado neste colégio municipal de Campo Grande, capital sul-mato-grossense. A menina é atendida desde a adolescência pela Apae, distante cerca de 500 metros do local onde hoje cursa o EJA. O autismo e o descumprimento da legislação pelas escolas fizeram com que só aos 18 anos chegasse ao ensino regular.

“É um caminho sem volta. Como no mar, no começo enfrenta a tempestade e a ressaca das águas, mas depois segue”, compara Elenir Rodrigues. Assistente social da Apae, a mulher, de pele morena, de olhos castanho-amendoados e cabelo pintado de chocolate, é tão parecida fisicamente com a filha que poucos diriam que ela é adotiva. Os laços afetivos também são fortes e foram construídos por meio das lutas que a militante dos direitos humanos conta ter travado para que hoje a filha participe das aulas e possa brincar de “batata-quente” com os colegas.

Ela já havia arriscado, por outras duas vezes, colocar a menina na escola regular. Na primeira tentativa, não houve interesse dos colégios em que tentou matricular Fabiana. Da segunda vez, não completou a experiência temendo que o comprometimento da filha pudesse piorar devido ao estresse gerado pelo início traumático no colégio. Elenir esperou a filha amadurecer e as leis se modernizarem para se instrumentalizar e matriculá-la no ensino comum.

Foi isso que fez em 2008. Aquele foi o primeiro passo para uma travessia que ainda está em curso. Nos primeiros dias de aula, fora de sua rotina habitual, Fabiana gritava e batia nos armários da sala, impedindo a concentração dos outros colegas. A maior parte da turma considerou a situação insustentável e chegou a pedir que a retirassem da classe, sob a ameaça de abandonarem o colégio se o pedido não fosse atendido.

Mesmo com tantos obstáculos no caminho, a Secretaria Municipal de Educação teimava em não se mexer. O órgão ainda estudava se liberaria um professor chamado de itinerante para auxiliar os titulares a acompanhar a educação da menina. O pedido de um novo educador só foi aceito dois meses depois do início das aulas. Começava ali uma nova etapa de aprendizado, para Fabiana, para a escola, para os colegas e para os professores.

Sentada em um dos bancos azuis de concreto distribuídos pelo pátio do colégio, onde hoje a filha estuda, Elenir conta que distribuiu um manual para os educadores sobre como lidar com Fabiana. “Instruções simples, como não tocar e dar ordens com frases curtas e diretas: ‘Não mexe, Fabiana’”, exemplifica.

Ela lembra que a jovem não está no padrão, mas assegura seu potencial para aprender o conteúdo a seu tempo. “É difícil conviver com pessoas que não percebem que a criatura se vira do seu jeito. Ela não tem reflexo rápido, nem percepção de reagir, mas isso depende do comando e da convivência com alguém”, explica no pátio, agora vazio.

Elenir prossegue em seu discurso: “A gente, que é lúcida, não dá conta desse mundo louco. É um modo de viver diferente. Ela saca um monte de coisas, as pessoas é que não percebem a Fabiana. Elas é que são deficientes”, subverte.

Os gritos da mudança

Na direção da escola, enquanto atende ao telefone, dá instruções aos professores e auxilia os alunos, Raquel Ramos, a diretora, me conta sobre a experiência com os deficientes no Abel Freire de Aragão. “Na minha geração (ela tem 37 anos), os pais escondiam os filhos com deficiência em casa. Na sua (tenho 25), eles mandavam para as escolas especiais. Hoje, eles vêm para o ensino regular como qualquer outra criança”, resume.

A grande mudança que deve ser entendida pelos professores, segundo a diretora da escola de Fabiana, é que cada aluno tem seu tempo de aprendizado. “Todos caminhando no mesmo ritmo não existe mais, nunca existiu. É preciso aceitar os diferentes. Muitos se negam a aprender essa lição, mas ela fica batendo na porta”, expõe, tentando demonstrar que consegue acompanhar esse processo.

Essas mudanças ficaram ainda mais perceptíveis para a diretora com a entrada de Fabiana na escola. “Ela veio fazer a diferença. Os alunos que não se envolviam passaram a se manifestar”, avalia, lembrando do dia em que recebeu um grupo insatisfeito com a gritaria da adolescente e respondeu que não poderia impedi-la de estudar.

As leis realmente começavam a fazer efeito na prática e, desta vez, a vaga como aluna estava garantida. No entanto, a diretora confessa que não acreditava na permanência da jovem na escola. “Achei que ela não ia se adaptar à sala e vice-versa. São pessoas com mais de 40 anos, que voltaram a estudar depois de muito tempo. Pensei que eles poderiam abandonar os estudos em massa, o que acarretaria no fechamento da classe”, admite, ao mesmo tempo em que opera o fax, ainda bastante utilizado neste canto de Brasil.

A adaptação mútua ocorreu mais rápido do que Raquel imaginava, mas não ficou isenta de equívocos. “Passamos a dar Coca-Cola ou doce quando entrava em crise. Só que ela não é boba, quando quer uma dessas coisas, começa a gritar e só para quando damos”, revela.

A conduta é criticada por Elenir Rodrigues com palavras duras, despejadas planejadamente cordiais. Ela cobra o mesmo tratamento que os outros estudantes recebem. “Minha filha não pode receber mimos a toda hora. A vida não é assim. Ela é uma aluna como qualquer outra”, ressalta, disparando seu característico olhar de raio laser, que parece dissecar o interlocutor.

A diretora admite o erro com naturalidade; porém, acredita que dificilmente conseguirá reverter o processo. “Se não damos o que quer, ela fica o tempo todo gritando e não deixa os outros alunos se concentrarem. Tenho que pensar no conjunto”, justifica.

Hora da prova!

Em sala de aula e fora dessa discussão, Fabiana divide o espaço com apenas oito alunos nesta segunda-feira, dia de prova de Português e Educação Física. Todos estão com cara de sono.

Fabiana está impaciente. Olha o lápis na sua mão e bate na mesa. Veste calça e casaco de moletom azul-claro e, agora, pega o brinco de uma senhora que está ao seu lado. Levanta dizendo algo incompreensível e sai da sala. Ela vai ao banheiro. O único aluno jovem do ambiente remeda disfarçadamente a menina.

Após vinte minutos do início da aula, a professora ainda não apareceu na sala. Os presentes quase dormem. Barulho mesmo só o do ventilador, o que já é suficiente para distrair bastante a atenção. Velhos, eles só não são mais incômodos que a falta de iluminação do recinto, onde, das oito lâmpadas fosforescentes, três estão queimadas e uma está oscilante.

“Meia hora sem fazer nada é muita coisa”, reclama uma senhora de óculos e cabelo preso que aparenta ter mais de 60 anos. O professor auxiliar lembra que o alfabeto está na parede e que os estudantes podem aprender os dias da semana e os meses do ano. Todos se viram para a parede e descobrem as letras que sempre estiveram ali. Só com a chegada da titular, Claudinei recebe o material que vai ser explicado em classe e resolve ampliar para trabalhar com Fabiana. O processo deixa a menina com menos tempo para fazer as atividades do que os colegas.

Enquanto isso, os alunos recebem uma folha com uma cruzadinha a ser completada. É a revisão para a prova de Português daquela noite. São figuras acompanhadas de números. Nos quadrados, devem preencher o nome dos desenhos indicados: lua, coração, olhos...

Ela volta do banheiro já pedindo – Coca! Coca! Claudinei ignora e saca de sua pasta uma caixa com canetinhas, lápis de cor e outros materiais escolares. Ele mostra a figura e explica que aquilo é a lua. Coordena pacientemente a mão dela para escrever a palavra: “Segura o lápis direito, Fabiana!”, orienta.

Fora dali, o tempo muda. Começa a trovejar e o vento se torna frio. Uma tempestade ameaça cair e sujar ainda mais as paredes já manchadas pela terra vermelha da cidade, conhecida como morena, por esta característica.

O exercício mal termina de ser completado e o sino já toca para a próxima disciplina. É hora da prova de Educação Física. Passaram-se quatro meses desde a primeira aula, mas pouca coisa tinha evoluído por ali: dos nove alunos, apenas três já conseguem ler. Fabiana ainda não é um deles. Mesmo assim, a professora confia na evolução da aluna. “Vai aprendendo dentro das limitações dela. Acredito que ela chega às próximas etapas”, sentencia Veroca.

Ela tem mais de 50 anos e ainda permanece com jeito jovial que combina com sua roupa esportiva. A professora conduz a leitura da prova de forma despojada, mas para ao perceber que a incompreensão é geral. Começa tudo de novo. Claudinei pede que Fabiana escreva seu nome na prova. Ela tenta olhar para o outro lado. O teste é em forma de cruzadinha e vai sendo traduzido pela professora aos alunos, que aos poucos vão sendo inseridos em um novo mundo.

Antes da prova seguinte, a de Português, os alunos cochicham entre si. Eles estão apreensivos. Fabiana brinca com um papel de bombom e não parece preocupada. Ela embarca em mais uma viagem interna, olha para o caderno, coloca a mão no braço de uma colega e volta a se perder em seus pensamentos.

Nesse momento, todos estão com a prova e a jovem possui apenas papel e lápis na mão. Sem saber, aguarda o professor auxiliar ampliar seu teste para que possa realizá-lo. Quando Claudinei chega, prefere levar Fabiana para fazer a prova na biblioteca, onde pode utilizar revistas para auxiliá-la.

A chuva começa a cair com força. A mesma intensidade é adotada pela estudante, que agora folheia uma revista Veja antiga, de 14 de março de 2001, que traz uma matéria de capa sobre o ex-governador de São Paulo Mário Covas, então recém-falecido. Distraída, dispõe de tanta energia que algumas páginas não resistem e se rasgam. Ao mesmo tempo, o professor corta letras de outras revistas e mostra para ela, sem conseguir chamar sua atenção.

Fabiana precisa colar as letras que formam palavras, como pare e bola. Ela apenas finge prestar atenção, como muitos de nós fazemos com algo que não nos interessa, e realiza o que realmente quer: folhear a revista. “Eu vejo o que ela consegue fazer. O que não dá vai ficando”, admite Claudinei, com seu jeito tímido.

Esperta, mesmo respeitando o que é ordenado pelo professor, a jovem continua concentrada em seu ponto imaginário. Ela está mais preocupada com seu mundo. Às vezes o desprezo pelo que se passa a sua volta parece aquele desdém de quando pensamos: “Que saco esta aula!”.

“Hã, hã”, faz manha e interrompe o silêncio dizendo: “Quero papá!”. Olha de lado, o cabelo está mais liso, graças a uma escova progressiva, e cai mais leve pelos ombros. Claudinei finge que não ouve o pedido e continua procurando palavras na revista.

Em algumas ocasiões, Fabiana faz a prova em mais de um dia por causa de sua dificuldade de concentração. Essa de Português teria de ser assim. Afinal, já era quase hora do intervalo.

Aluna popular

No recreio, que ocorre entre 20h15 e 20h30, Fabiana distribui beijo no rosto dos amigos e cumprimenta os colegas com um toque de mão, feito com punhos fechados. Ela quer Coca. A mãe não tem dinheiro: “Vamos ver se esquece. Tenho que ir administrando. Não é todo dia que tem verba”.

Encorpada e de estatura mediana, a jovem negra circula pelos diversos grupos que se formam nesse horário. Todo mundo a conhece na escola. As senhoras evangélicas tentam agradá-la. Os outros jovens com deficiência ficam em sua volta. Fabiana ousa até mesmo mudar a música dos jovens que ouvem rap, classificados como maloqueiros perigosos pelos outros grupos. Eles não se incomodam e até acham graça da cena. É quase hora de voltar para a sala e afobada ela solta: “Coca!”.

Não havia esquecido. Agora, não terá jeito. Elenir segue até a cantina e compra em sua conta o refrigerante mais famoso do mundo. Com sua lata de metal vermelha, com inscrições brancas, a jovem segue para a sala fazendo sucções frenéticas por meio de um canudo.

Enquanto ela já interage com os outros alunos, Elenir manuseia agulhas de crochê e tece um tapete forjando ser uma simples mãe naquele ambiente. Atenta e sempre prestes a “socar” quem fizer algo que considera errado com a filha, ela agora parece querer passar despercebida ao intuitivamente combinar o tom predominante de sua roupa com o azul do prédio do colégio.

“Eu gosto de estar aqui. A coisa mais importante da minha vida é essa caminhada da minha filha.” A prova disso acontece quando atende o celular e nega um convite para lecionar em uma universidade. “Não posso. Esse é o horário em que Fabiana vai à escola!”

*Esse texto foi produzido como trabalho da pós-graduação em Jornalismo Literário, da Academia Brasileira de Jornalismo Literário, e publicado no site Jornalirismo.