quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Análise: Manoel de Barros dedicou a vida a escrever poesia sobre o nada

A vida de Manoel de Barros foi dedicada ao nada. Era para isso que ele prestava. Chegava a sofrer moralmente por só fazer coisas inúteis. Os livros sobre nada de Manoel de Barros tinham poesia, cores, paisagens, palavras inventadas e muita beleza singela. Ele completaria 98 anos em dezembro, mas ainda era uma criança. Só teve infância, como ele mesmo diz em seus poemas. Manoel morreu nesta quinta (13), mas há meses a infância tinha entardecido: já não escrevia, não falava, enxergava mal e se alimentava por aparelhos.
Foi o poeta brasileiro que mais publicou livros --foram 34 ao todo. Sua escrita era comparada a de Guimarães Rosa, ganhou dois prêmios Jabuti, mas nada disso o lisonjeava. Cada vez que publicava um livro fugia desonrado para o Pantanal, onde era abençoado por garças.
Nasceu no Beco da Marinha, em Cuiabá, a capital do Mato Grosso, e mudou-se para o vizinho Mato Grosso do Sul no começo da infância. Radicou-se em Corumbá, que ganha a alcunha de capital do Pantanal por ser o maior e mais populoso município dessa região alagada.
Mas ele gostava mesmo das partes isoladas, a fazenda em que cresceu e era seu universo predileto. Foi criado entre bichos de chão, pessoas humildes, aves, árvores e rios. Gostava de viver em lugares decadentes, por apreciar estar entre pedras e lagartos. "Só as coisas rasteiras me celestam", escrevia. Na idade adulta, vivia em um mundo pequeno, com um rio e um pouco de árvores.
Manoel teve um ídolo: Bernardo. O capataz da fazenda que enriquecia a natureza com sua incompletude. Manoel dizia que Bernardo era quase árvore. E o que seu silêncio era tão alto que os passarinhos escutavam de longe. O capataz trabalhava na fazenda que Manoel tinha herdado e que o sustentava. Não apenas de dinheiro, mas de poesia. Era lá que ele se alimentava do Pantanal. Mas não era, segundo ele próprio, poeta de natureza, ecológico ou criador de folclore.
Infância e reclusão
Seu primeiro professor de "agramática" foi o padre Ezequiel, que percebeu o gosto do adolescente Manoel, aos 13 anos, por nadas. O menino receoso percebia que gostava dos defeitos das frases, e o padre alertava que isso poderia tornar-se virtude.
Em 1937, chegou a ir para o Rio de Janeiro, onde morou por 12 anos e publicou os primeiros livros. Tímido, ele não frequentou o círculo de grandes escritores, apesar de ter tentado, sem sucesso, se aproximar de Clarice Lispector e Manoel Bandeira. Foi lá que conheceu Stella, a companheira da vida com quem teve três filhos. Quando o pai morreu de infarto, ele herdou a fazenda Santa Cruz, no Pantanal e mudou para lá. Foram anos no lugar. Isolado. Entre lagartos e rios.
O pantaneiro dizia que do que escrevia, só 10% era mentira, o resto era imaginação. A frase ficou eternizada, dando nomes a peça de teatro e documentário sobre ele. Recluso, Manoel não dava entrevistas. O ser biológico não interessava, só o letral, dizia. Com raras exceções, falava com o amigo jornalista Bosco Martins, que escrevia para revistas como "Caros Amigos" e "Bravo".
Nunca foi ao "Roda Viva", ao "Programa do Jô", mas topou falar com o diretor Pedro Cézar para um documentário sobre ele, após o cineasta dizer que "era só um sonho". Lançado em 2010, o filme mostra o poeta ainda produzindo. "Eu falo e escrevo absurdez. A palavra oral não dá rascunho", dizia, justificando a aversão a entrevistas.
Na escrita, Manoel pretendia dar sentido literário aos pássaros, ao sol, às águas e aos seres. Seu cuidado era para que as palavras não caíssem nos louvamentos à exuberância do Pantanal, não descambando no adjetivamento excessivo. Queria ser amparado por substantivos –verbais– como ele destacava, sem ser engolido pelo cenário.
Heranças
Além das agruras da idade, que insistiam lembrar que não era mais a criança entre bichos e paisagens, tinha perdido os dois filhos, João, aos 50 anos, em um acidente aéreo em 2007, e Pedro, que sofreu três derrames e morreu no ano passado. Deixa a esposa, Stella, companheira de uma vida e a filha, Martha, que cuida dos direitos autorais.
A partir de 2015, os livros de Manoel ganham novo selo e serão editados pela Alfaguara, da editora Objetiva. O anúncio foi feito há poucos dias. Até este ano, sua obra era publicada pela Leya. O poeta guarda no "lugar de ser inútil", o escritório onde escrevia em sua casa, seus cadernos de rascunhos escritos a lápis que nunca foram publicados. Os versos soltos compuseram livros anteriores, mas muitos deles podem chegar ao público só, agora, após a morte do poeta.
Em Campo Grande, uma avenida que liga ao centro administrativo estadual, chamado de Parque dos Poderes, já ganhou o nome de "do poeta", à espera da morte de um dos maiores escritores locais para ganhar seu nome –uma lei proíbe homenagem a pessoas vivas. No meu morrer tem uma dor de árvore, escrevia Manuel. É essa dor que sentem hoje a família, os amigos e os leitores".
A poesia está guardada nas palavras - é tudo que eu sei. / Meu fado é o de não saber quase tudo. / Sobre o nada eu tenho profundidades. / Não tenho conexões com a realidade. / Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. / Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas). / Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil. / Fiquei emocionado. / Sou fraco para elogios.Manoel de Barros
O  texto foi publicado no site UOL. Veja aqui.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Fabiana vai à escola*

— Presente! – responde a adolescente de modo firme, com sílabas atropeladas e olhos enviesados, como se desdenhasse a professora que faz a chamada. Aos 19 anos, ela usa o cabelo crespo e negro preso, calça jeans azul e camiseta branca para frequentar a turma noturna de alfabetização do Ensino de Jovens e Adultos, o EJA. Passa a aula aérea, olhando para o infinito e só nota o conteúdo apresentado quando sua atenção é requisitada.

Às 20h30 de uma terça-feira, o aprendizado de Fabiana Rodrigues caminha lento, acompanhando o ritmo dos seus colegas de sala. Eles identificam vogais, consoantes e números, mas ainda não conseguem juntá-las. Nenhum lê e escreve com desenvoltura, mas alguns, como ela, já rabiscam o próprio nome em letras milimetricamente arquitetadas e tremidas.

Na primeira aula do ano de Educação Física, a educadora utiliza a brincadeira da “batata-quente” para que os estudantes memorizem os nomes uns dos outros. Animada, a professora Vera Lúcia Gomes pede para os alunos formarem um círculo com as cadeiras e faz com que todos entrem na brincadeira – inclusive o repórter, que se atreve a permanecer em sala.

Fabiana é a primeira a dizer seu nome, dispensando-a de ter que decorar o dos colegas. A brincadeira segue e todos se divertem, inclusive a jovem, que ora acompanha o movimento da bola de meia, ora fica absorta em seus pensamentos, com o olhar perdido no fundo da sala. Ali, apesar de o recinto ser ocupado por adultos no período noturno, as cadeiras e as mesas são pequenas, ideais para crianças que estudam no local nos dois períodos do diurno. Nas paredes, letras e números auxiliam os alunos a decifrar os códigos da alfabetização.

No quadro-negro, palavras com cada letra do alfabeto estão escritas a giz, dividindo espaço com pequenas rachaduras. “Abacaxi, borboleta, caju, dado...” e a sequência completada por “zebra” seguem sem conseguir despertar a atenção de Fabiana, que tem nas mãos pirulito, um lápis e uma lata de Coca-Cola.

Veroca, como é chamada a titular da disciplina de Educação Física, interage com a turma e questiona quantos gostam de fazer alongamento. Fabiana, com a boca aberta, olha para o fundo da classe. Poucos se manifestam. Mesmo assim, a professora dá ordem que todos se levantem e ainda em círculo estiquem braços e pernas. Fabiana repete os movimentos de forma desengonçada, acompanhada pelos outros 15 estudantes de sua classe, na maioria idosos.

O sino bate e é hora da aula de Educação Artística. A adolescente e Claudinei Vieira, o professor que a auxilia em classe, sentam na primeira fila, no lado oposto à porta. “Que cor é essa?”, ele pergunta. “Vermelho!”, responde ela, sem vacilar. No caderno, pinta as formas de maneira descoordenada. Abusa da força e quebra a ponta do lápis diversas vezes. Rodrigo Viana, o professor de Artes, incentiva: “Bonito! Trabalha com muita expressão”. Enquanto isso, ela está incomodada com um "courinho" que salta do dedo mindinho, resultado da autodestruição, uma das características do autismo. Síndrome que também provoca desvios qualitativos na comunicação, na interação social e no uso da imaginação.

Na troca seguinte de professores, uma delas reclama do cansaço. Numa conversa entrecortada, a outra responde com ironia: “Vai se acostumando, que ano que vem tem mais”, referindo-se, com sorriso amarelo, implicitamente sobre o processo de entrada dos deficientes no colégio.

Tão perto e tão longe

Após um dia de trabalho, Elenir chega em casa às 18h. Tem uma hora para comer, ajeitar a bagunça doméstica e levar Fabiana para a escola. A menina passa a manhã com uma “cuidadora” e, à tarde, na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, a Apae.

Moram a apenas algumas quadras do colégio e palmilham o caminho a pé. Fabiana segue uma linha imaginária e repisa os mesmos espaços diariamente. O trajeto foi orientado pela mãe, que fica no controle para a filha não passar pelos lugares não calçados e não sujar os sapatos em dias de chuva recente. A menina caminha roboticamente à nossa frente. “Espera! Na calçada, Fabiana!”, comanda a mãe em tom de sargento de quartel.

Apesar de sempre ter estudado próximo à Escola Abel Freire de Aragão, o caminho de Fabiana foi longo até chegar ao ensino público comum ofertado neste colégio municipal de Campo Grande, capital sul-mato-grossense. A menina é atendida desde a adolescência pela Apae, distante cerca de 500 metros do local onde hoje cursa o EJA. O autismo e o descumprimento da legislação pelas escolas fizeram com que só aos 18 anos chegasse ao ensino regular.

“É um caminho sem volta. Como no mar, no começo enfrenta a tempestade e a ressaca das águas, mas depois segue”, compara Elenir Rodrigues. Assistente social da Apae, a mulher, de pele morena, de olhos castanho-amendoados e cabelo pintado de chocolate, é tão parecida fisicamente com a filha que poucos diriam que ela é adotiva. Os laços afetivos também são fortes e foram construídos por meio das lutas que a militante dos direitos humanos conta ter travado para que hoje a filha participe das aulas e possa brincar de “batata-quente” com os colegas.

Ela já havia arriscado, por outras duas vezes, colocar a menina na escola regular. Na primeira tentativa, não houve interesse dos colégios em que tentou matricular Fabiana. Da segunda vez, não completou a experiência temendo que o comprometimento da filha pudesse piorar devido ao estresse gerado pelo início traumático no colégio. Elenir esperou a filha amadurecer e as leis se modernizarem para se instrumentalizar e matriculá-la no ensino comum.

Foi isso que fez em 2008. Aquele foi o primeiro passo para uma travessia que ainda está em curso. Nos primeiros dias de aula, fora de sua rotina habitual, Fabiana gritava e batia nos armários da sala, impedindo a concentração dos outros colegas. A maior parte da turma considerou a situação insustentável e chegou a pedir que a retirassem da classe, sob a ameaça de abandonarem o colégio se o pedido não fosse atendido.

Mesmo com tantos obstáculos no caminho, a Secretaria Municipal de Educação teimava em não se mexer. O órgão ainda estudava se liberaria um professor chamado de itinerante para auxiliar os titulares a acompanhar a educação da menina. O pedido de um novo educador só foi aceito dois meses depois do início das aulas. Começava ali uma nova etapa de aprendizado, para Fabiana, para a escola, para os colegas e para os professores.

Sentada em um dos bancos azuis de concreto distribuídos pelo pátio do colégio, onde hoje a filha estuda, Elenir conta que distribuiu um manual para os educadores sobre como lidar com Fabiana. “Instruções simples, como não tocar e dar ordens com frases curtas e diretas: ‘Não mexe, Fabiana’”, exemplifica.

Ela lembra que a jovem não está no padrão, mas assegura seu potencial para aprender o conteúdo a seu tempo. “É difícil conviver com pessoas que não percebem que a criatura se vira do seu jeito. Ela não tem reflexo rápido, nem percepção de reagir, mas isso depende do comando e da convivência com alguém”, explica no pátio, agora vazio.

Elenir prossegue em seu discurso: “A gente, que é lúcida, não dá conta desse mundo louco. É um modo de viver diferente. Ela saca um monte de coisas, as pessoas é que não percebem a Fabiana. Elas é que são deficientes”, subverte.

Os gritos da mudança

Na direção da escola, enquanto atende ao telefone, dá instruções aos professores e auxilia os alunos, Raquel Ramos, a diretora, me conta sobre a experiência com os deficientes no Abel Freire de Aragão. “Na minha geração (ela tem 37 anos), os pais escondiam os filhos com deficiência em casa. Na sua (tenho 25), eles mandavam para as escolas especiais. Hoje, eles vêm para o ensino regular como qualquer outra criança”, resume.

A grande mudança que deve ser entendida pelos professores, segundo a diretora da escola de Fabiana, é que cada aluno tem seu tempo de aprendizado. “Todos caminhando no mesmo ritmo não existe mais, nunca existiu. É preciso aceitar os diferentes. Muitos se negam a aprender essa lição, mas ela fica batendo na porta”, expõe, tentando demonstrar que consegue acompanhar esse processo.

Essas mudanças ficaram ainda mais perceptíveis para a diretora com a entrada de Fabiana na escola. “Ela veio fazer a diferença. Os alunos que não se envolviam passaram a se manifestar”, avalia, lembrando do dia em que recebeu um grupo insatisfeito com a gritaria da adolescente e respondeu que não poderia impedi-la de estudar.

As leis realmente começavam a fazer efeito na prática e, desta vez, a vaga como aluna estava garantida. No entanto, a diretora confessa que não acreditava na permanência da jovem na escola. “Achei que ela não ia se adaptar à sala e vice-versa. São pessoas com mais de 40 anos, que voltaram a estudar depois de muito tempo. Pensei que eles poderiam abandonar os estudos em massa, o que acarretaria no fechamento da classe”, admite, ao mesmo tempo em que opera o fax, ainda bastante utilizado neste canto de Brasil.

A adaptação mútua ocorreu mais rápido do que Raquel imaginava, mas não ficou isenta de equívocos. “Passamos a dar Coca-Cola ou doce quando entrava em crise. Só que ela não é boba, quando quer uma dessas coisas, começa a gritar e só para quando damos”, revela.

A conduta é criticada por Elenir Rodrigues com palavras duras, despejadas planejadamente cordiais. Ela cobra o mesmo tratamento que os outros estudantes recebem. “Minha filha não pode receber mimos a toda hora. A vida não é assim. Ela é uma aluna como qualquer outra”, ressalta, disparando seu característico olhar de raio laser, que parece dissecar o interlocutor.

A diretora admite o erro com naturalidade; porém, acredita que dificilmente conseguirá reverter o processo. “Se não damos o que quer, ela fica o tempo todo gritando e não deixa os outros alunos se concentrarem. Tenho que pensar no conjunto”, justifica.

Hora da prova!

Em sala de aula e fora dessa discussão, Fabiana divide o espaço com apenas oito alunos nesta segunda-feira, dia de prova de Português e Educação Física. Todos estão com cara de sono.

Fabiana está impaciente. Olha o lápis na sua mão e bate na mesa. Veste calça e casaco de moletom azul-claro e, agora, pega o brinco de uma senhora que está ao seu lado. Levanta dizendo algo incompreensível e sai da sala. Ela vai ao banheiro. O único aluno jovem do ambiente remeda disfarçadamente a menina.

Após vinte minutos do início da aula, a professora ainda não apareceu na sala. Os presentes quase dormem. Barulho mesmo só o do ventilador, o que já é suficiente para distrair bastante a atenção. Velhos, eles só não são mais incômodos que a falta de iluminação do recinto, onde, das oito lâmpadas fosforescentes, três estão queimadas e uma está oscilante.

“Meia hora sem fazer nada é muita coisa”, reclama uma senhora de óculos e cabelo preso que aparenta ter mais de 60 anos. O professor auxiliar lembra que o alfabeto está na parede e que os estudantes podem aprender os dias da semana e os meses do ano. Todos se viram para a parede e descobrem as letras que sempre estiveram ali. Só com a chegada da titular, Claudinei recebe o material que vai ser explicado em classe e resolve ampliar para trabalhar com Fabiana. O processo deixa a menina com menos tempo para fazer as atividades do que os colegas.

Enquanto isso, os alunos recebem uma folha com uma cruzadinha a ser completada. É a revisão para a prova de Português daquela noite. São figuras acompanhadas de números. Nos quadrados, devem preencher o nome dos desenhos indicados: lua, coração, olhos...

Ela volta do banheiro já pedindo – Coca! Coca! Claudinei ignora e saca de sua pasta uma caixa com canetinhas, lápis de cor e outros materiais escolares. Ele mostra a figura e explica que aquilo é a lua. Coordena pacientemente a mão dela para escrever a palavra: “Segura o lápis direito, Fabiana!”, orienta.

Fora dali, o tempo muda. Começa a trovejar e o vento se torna frio. Uma tempestade ameaça cair e sujar ainda mais as paredes já manchadas pela terra vermelha da cidade, conhecida como morena, por esta característica.

O exercício mal termina de ser completado e o sino já toca para a próxima disciplina. É hora da prova de Educação Física. Passaram-se quatro meses desde a primeira aula, mas pouca coisa tinha evoluído por ali: dos nove alunos, apenas três já conseguem ler. Fabiana ainda não é um deles. Mesmo assim, a professora confia na evolução da aluna. “Vai aprendendo dentro das limitações dela. Acredito que ela chega às próximas etapas”, sentencia Veroca.

Ela tem mais de 50 anos e ainda permanece com jeito jovial que combina com sua roupa esportiva. A professora conduz a leitura da prova de forma despojada, mas para ao perceber que a incompreensão é geral. Começa tudo de novo. Claudinei pede que Fabiana escreva seu nome na prova. Ela tenta olhar para o outro lado. O teste é em forma de cruzadinha e vai sendo traduzido pela professora aos alunos, que aos poucos vão sendo inseridos em um novo mundo.

Antes da prova seguinte, a de Português, os alunos cochicham entre si. Eles estão apreensivos. Fabiana brinca com um papel de bombom e não parece preocupada. Ela embarca em mais uma viagem interna, olha para o caderno, coloca a mão no braço de uma colega e volta a se perder em seus pensamentos.

Nesse momento, todos estão com a prova e a jovem possui apenas papel e lápis na mão. Sem saber, aguarda o professor auxiliar ampliar seu teste para que possa realizá-lo. Quando Claudinei chega, prefere levar Fabiana para fazer a prova na biblioteca, onde pode utilizar revistas para auxiliá-la.

A chuva começa a cair com força. A mesma intensidade é adotada pela estudante, que agora folheia uma revista Veja antiga, de 14 de março de 2001, que traz uma matéria de capa sobre o ex-governador de São Paulo Mário Covas, então recém-falecido. Distraída, dispõe de tanta energia que algumas páginas não resistem e se rasgam. Ao mesmo tempo, o professor corta letras de outras revistas e mostra para ela, sem conseguir chamar sua atenção.

Fabiana precisa colar as letras que formam palavras, como pare e bola. Ela apenas finge prestar atenção, como muitos de nós fazemos com algo que não nos interessa, e realiza o que realmente quer: folhear a revista. “Eu vejo o que ela consegue fazer. O que não dá vai ficando”, admite Claudinei, com seu jeito tímido.

Esperta, mesmo respeitando o que é ordenado pelo professor, a jovem continua concentrada em seu ponto imaginário. Ela está mais preocupada com seu mundo. Às vezes o desprezo pelo que se passa a sua volta parece aquele desdém de quando pensamos: “Que saco esta aula!”.

“Hã, hã”, faz manha e interrompe o silêncio dizendo: “Quero papá!”. Olha de lado, o cabelo está mais liso, graças a uma escova progressiva, e cai mais leve pelos ombros. Claudinei finge que não ouve o pedido e continua procurando palavras na revista.

Em algumas ocasiões, Fabiana faz a prova em mais de um dia por causa de sua dificuldade de concentração. Essa de Português teria de ser assim. Afinal, já era quase hora do intervalo.

Aluna popular

No recreio, que ocorre entre 20h15 e 20h30, Fabiana distribui beijo no rosto dos amigos e cumprimenta os colegas com um toque de mão, feito com punhos fechados. Ela quer Coca. A mãe não tem dinheiro: “Vamos ver se esquece. Tenho que ir administrando. Não é todo dia que tem verba”.

Encorpada e de estatura mediana, a jovem negra circula pelos diversos grupos que se formam nesse horário. Todo mundo a conhece na escola. As senhoras evangélicas tentam agradá-la. Os outros jovens com deficiência ficam em sua volta. Fabiana ousa até mesmo mudar a música dos jovens que ouvem rap, classificados como maloqueiros perigosos pelos outros grupos. Eles não se incomodam e até acham graça da cena. É quase hora de voltar para a sala e afobada ela solta: “Coca!”.

Não havia esquecido. Agora, não terá jeito. Elenir segue até a cantina e compra em sua conta o refrigerante mais famoso do mundo. Com sua lata de metal vermelha, com inscrições brancas, a jovem segue para a sala fazendo sucções frenéticas por meio de um canudo.

Enquanto ela já interage com os outros alunos, Elenir manuseia agulhas de crochê e tece um tapete forjando ser uma simples mãe naquele ambiente. Atenta e sempre prestes a “socar” quem fizer algo que considera errado com a filha, ela agora parece querer passar despercebida ao intuitivamente combinar o tom predominante de sua roupa com o azul do prédio do colégio.

“Eu gosto de estar aqui. A coisa mais importante da minha vida é essa caminhada da minha filha.” A prova disso acontece quando atende o celular e nega um convite para lecionar em uma universidade. “Não posso. Esse é o horário em que Fabiana vai à escola!”

*Esse texto foi produzido como trabalho da pós-graduação em Jornalismo Literário, da Academia Brasileira de Jornalismo Literário, e publicado no site Jornalirismo.

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Ana e eu*

Casada, um filho morto, pouco ou nenhum contato com o restante da família. Sentada, olha a paisagem urbana da região central de São Paulo como se fizesse parte dela. Aquela mulher não precisa mais do sobrenome. O nome é o resto de uma vida que ela tenta esquecer e prefere não contar: o passado sofrido. O marido, Cícero, diz que estão juntos há 20 anos, mas nunca conheceu seus parentes. Ela jura que os dois irmãos que vivem na capital paulista sabem de seu paradeiro.

Ana usa um agasalho para se proteger do friozinho sentido em uma segunda-feira de janeiro nublada e chuvosa, que parecia fazer tributo à cidade que comemora aniversário naquele dia 25. As unhas estão pretas de sujeira e os cabelos, brancos e despenteados – essa característica, ela resolve ao sacar um pequeno pente preto de sua bolsa e tentar desembaraçá-los, pelo menos até que assentem um pouco. Apesar de já passarem das 16 horas, devia ser a primeira vez que fazia aquilo no dia.

Para mim, não foi fácil chegar até ali. E foi mais difícil ainda conversar com ela. Em certo momento, deu vontade de chorar e fiquei com medo dos meus olhos me traírem. Depois pensei que a pena que ela despertava em mim não era benéfica para a matéria. Então quem era ela? Como sobrevivia? O que desejava? “Você tá me especulando da ponta do pé até o último fio de cabelo”, repetiu ela por três vezes, até eu conseguir entender o que falava. O barulho do trânsito constante aliado à sua voz baixa me impediram de entender muitas coisas do que disse. Minha opção de, pela primeira vez, fazer uma matéria sem anotar ou gravar nada, com medo de que isso pudesse atrapalhar algo, também me fez perder partes daquele diálogo.

Em meio à poluição sonora, a voz embargada, típica de quem já se abasteceu com o combustível daqueles que precisam inebriar a mente para sobreviver, dispara: “Eu bebo, mas não mexo com ninguém. Mas esse homem aí, ó. Esse aí...”, aponta, com mais raiva e quase me obrigando a olhar para trás e encarar seu algoz. Resisto à curiosidade e não o faço, com medo de uma represália do homem, primeiro coberto, depois prestando atenção no que conversávamos. “Esse homem aí me bate, me incomoda. Eu quero que tirem ele daí”, balbucia, repetidas vezes, até conseguir que eu dê atenção e registre mentalmente o seu anseio. Logo ela que se interessou tão depressa por mim.

Ao chegar, puxei assunto e Ana foi logo pedindo para ficar mais perto. Parecia esperar por meses. Todos aqueles em que ensaiei conversar com ela. Quando me aproximei, um cachorro preto me atacou. Eu estava na defensiva – foi o meu primeiro medo naquele lugar. Era uma cadela gorda, que latia e tentava alcançar minhas pernas. A mulher me defendeu com um gesto de “passa” e pediu para eu me sentar ao seu lado. Com o comando, a cachorra voltou a deitar no seu espaço, onde repousava até que eu ousei adentrar o território que tomava conta. Sentei bem no campo indicado pela mulher e, numa fração de segundos, a distância que havia entre nós virou poeira.

Pela primeira vez, estávamos frente a frente e nos encarávamos. Sem desconfiança ou receios, ela foi me contando sobre como era morar no número 340 da Avenida General Olímpio da Silveira. A localização em frente ao metrô Marechal Deodoro era estratégica. Afinal, a moradora do canteiro da avenida utiliza o banheiro do terminal para fazer suas necessidades.

A mulher miúda e de expressão cansada me olhava no fundo dos olhos. Antes de perceber os barulhos que invadiam aquilo que representava a sua casa, me incomodei com o cheiro do lugar. O papelão onde dormiam protegidos por caixas exalava odor de urina. O cheiro me incomodava, mas não parecia ser percebido por eles e aos poucos fui me adaptando também. Parcialmente coberta, ela dizia que não faltava comida. “Os moradores dos prédios e das comunidades ali da rua de trás trazem para gente. Isso não falta, não é problema”, reitera, garantindo que não passa fome.

Na boca, sobraram poucos ou nenhum dente. Ela engasga nas palavras e conta sobre os onze dias em que ficou internada no Hospital Sorocabano. “Fui picada por um inseto”, diz. “Era piolho de cobra. Ela ficou com a cara toda verde, demorou um tempão para sair”, complementa o marido. “Eu fiquei sozinho!”, conta. Foi num desses dias longos e tristes para Cícero que eu tentei falar com ela pela primeira vez. Naquele começo de noite de domingo, um mormaço quente brotava do chão como se reverberasse o sol forte que acabara de se esconder. Para mim era uma noite morna, uma amiga reclamou do calor e no outro dia no rádio, ouvi que foi a noite mais quente dos últimos 12 meses, algo como 31ºC.

Era 10 de janeiro, e ela não estava no lugar onde eu sabia que morava. “O que teria acontecido?”, pensei. Poderia ter voltado para casa ou ter sido vítima de um dos perigos iminentes da rua. Onde estaria? Perambulei de um lado para o outro da via até chamar a atenção dos moradores do canteiro da avenida, que carrega consigo o Elevado Costa e Silva. Levei uma encarada de um dos vizinhos de Ana. “O que foi?”, gesticulou ele, com braços estendidos, para mim, que, arriscava olhar para o lugar que entendia ser seu. Saí dali, antes que arranjasse confusão e fiquei com medo de nunca conseguir saber a história daquela mulher.

***

E pensar que na primeira vez que a vi voltava feliz para casa depois de lembrar de passar na minha padaria predileta e comprar os deliciosos franceses que davam mais sabor às minhas manhãs. Curtia a brisa de um fim de tarde bonito, após um dia de julho mais quente que o comum em São Paulo. Havia sido pouco produtivo no serviço, mas nem isso me incomodava mais. Caminhava pensando na vida, ziguezagueando pelos cerca de 20 quarteirões que separavam meu local de trabalho de casa.

Percebi que atravessava o trecho de uma rua que nunca tinha estado antes. Sorri internamente, pois gostava de transitar por novos lugares, ver novas paisagens. Quando entendi onde estava, vi que passaria pela lateral do metrô Marechal Deodoro e alcançaria a General Olímpio da Silveira, a umas cinco quadras do prédio onde moro.

Foi aquela senhora sentada ao lado da estação que me tirou do cerne. De olhar perdido e cheio d’água, ela parecia mastigar alguma coisa. A cena durou meros segundos, mas o tapa na cara foi tão forte que o senti por algum tempo. Havia caído do meu pedestal e me juntado a ela. Pensei que, como um personagem de Clarice Lispector, poderia nunca mais voltar a ser a mesma pessoa. Aquela imagem reverberaria por muito tempo na minha cabeça.

Enquanto, os outros moradores de rua pareciam não me sensibilizar mais – quase se encaixando no quadro que retratava meu cotidiano –, aquela senhora ali, indefesa, com um problema nos olhos, passando em silêncio por todos os terrores da rua, parecia ter gritado comigo. Não teria casa? Filhos? Alguém que a ajude? Dormiria aquela noite ali, sentada ao lado do metrô?

Tive vontade de pegar sua mão e conduzi-la até em casa. No caminho, nos apresentaríamos e saberíamos tudo o que é possível de uma vida em dez minutos. Longe da rua, limparia seus olhos com colírio e algodão, pentearia seus cabelos grisalhos e desgrenhados e esquentaria suas mãos frias e trêmulas. Ouviria suas histórias e conselhos de vó. Talvez colocasse a cabeça em seu colo e fecharia os olhos enquanto ela fizesse cafuné. Não fiz nada disso. Quando percebi, meus passos largos já tinham me afastado daquela senhora.

Pelo menos os pães poderia ter dado a ela. Nem isso. Quando o trajeto estava completo e, finalmente, passava manteiga em um deles para saboreá-lo, engoli-o, com desprezo de quem estava em dívida com alguém. Tinha vontade de fazer minha parte e despejar meu conta-gotas no incêndio que é a miséria em São Paulo. Naquela noite nada fiz.

No outro dia, acordei e, ao pentear os cabelos, era como se minha imagem refletisse a da velha. Cabelos desgrenhados, olhos cheio d’água, boca mascando. Estava fora de mim. Pisquei os olhos novamente, afastando aquela cena incômoda. Voltei para a rotina mecânica, tentando esquecer tudo o que aquilo representava. Até consegui durante metade do dia. Mas, depois do almoço, voltava para o trabalho, quando vi outro morador de rua que dormia sobre a mão calejada e estendida, como se pedisse esmola mesmo durante o sono. O contraste da sujeira negra dos dedos, da mão branca e suas marcas, trouxeram à tona todos aqueles sentimentos de novo. Tinha culpa engasgada em meu ser. Não teria jeito, precisava agir.

E, no caso de Ana, havia algo de ainda mais grave. Ela lembra minha avó (sua ternura e fragilidade). Uma dessas mulheres fortes e lutadoras do interior do Brasil, que superou a fome para viver hoje uma vida modesta, mas confortável. No entanto, poderia ser ela ali, ou você, ou eu... E isso me angustiava.

***

Passaram oito meses até que conseguisse encarar aqueles olhos e saber a resposta para algumas das minhas perguntas. Pela primeira vez, percebi que a vista direita estava encoberta por uma membrana azulada. “É por conta do bicho”, disse ela. O marido explicou que ela deveria fazer uma raspagem e que, com isso, voltaria a enxergar normalmente com aquele olho. “Eu preciso que marque o médico”, pede ela. “Já vieram te levar e você não foi”, rebate ele. “Foi o Ivo, um gordo da comunidade ali em baixo, mas eu queria ir direto pro hospital”, explica Ana. Cícero conta que um carro veio levá-la, mas que ela ficou com medo e pediu que voltassem no outro dia. Agora, Ana espera que a cirurgia seja marcada e diz que depois vai sair da rua. “Só estou esperando isso”, promete, como se tentasse convencer a si mesma.

“Eu não entendo por que ela não sai da rua”, desabafa Cícero. Ele repete a frase por mais duas ou três vezes enquanto conversamos. Conta que tem uma casa fechada em Mauá e que foram para a rua após uma cunhada “encrencar” com Ana. “Ela disse para eu arrumar uma mulher mais nova e que, enquanto estivesse com ela, não precisava voltar lá. Foi quando viemos para cá”, diz.

Sua barba branca e espessa, que cobre boa parte do rosto, está ficando amarela. A pele morena e queimada do sol sofre com as marcas do tempo e com as intempéries do clima. Ele tem cor de concreto. A mesma que Ana. A mesma que todos por aqui. O mesmo material que reveste o viaduto que os encobre, o canteiro onde dormem, os prédios que os cercam e o órgão que pulsa no peito de quem nem os percebe mais ali. Talvez por tudo ser da mesma cor, haja mesmo dificuldade em percebê-los. Talvez eu só tenha notado Ana por que, em meio a tanto concreto, seus olhos ainda brilhem, não por ainda ter a chama da vida dentro de si, mas por chorar a morte de cada dia.

Ela lacrimeja, enquanto Cícero diz que, por conta do barulho, “não dorme nem um segundo”. “O movimento diminui 70% a partir da meia-noite e às 4h30 já volta por conta dos ônibus”, constata. Ele revela que, se a mulher voltasse para a família, ele poderia ir para sua casa. “Não volto por dó dela. Meus parentes não sabem que estou aqui e não vou deixar ela sozinha”, declara.

O pranto de Ana é mais fundo. E ela o conta enquanto o marido atravessa a avenida. Não tem problemas em viver na rua, em beber seu corote, guardado nas caixas que a cerca, junto com um pote de comida e com a bolsa preta que ela tanto fuça. “Mas esse homem aí, ô, esse aí me enche o saco. Ele me violenta. Quero que o tirem daí”, repete, agora com voz embargada e choro de verdade. O homem gordo encostado em sua cadeira de rodas enferrujada olha com desprezo para ela. O ar agora exala dor.

Com aquele desabafo em voz mole, ela deixa transparecer claramente que está sob efeitos da cachaça. Eu, que tinha tantas dúvidas, tantas perguntas, observo a cena em silêncio. Ela também se cala e abaixa a cabeça. Como num filme, aquele quadrado de mundo para, enquanto o restante acelera. Ela se recompõe aos poucos, me encara e despeja: “E então, meu filho?!”. Era como se cobrasse uma explicação pelo motivo de eu estar ali. Ela, que lacrimejava o tempo todo, parecia envergonhada pelo seu choro, pedindo para eu dizer algo, invertendo o foco da situação.

Aos 70 anos, a mulher de pele negra e cor de concreto vê o mundo por meio de lágrimas. Vou trabalhar, volto da aula, passo para ir para um barzinho... Ela está sempre ali, sentada, cabelo despenteado, resignada no seu canto. Cícero se movimenta. Ora confabula com outros moradores de rua em frente à estação de metrô, ora ocupa diferentes espaços ao longo daquele grande viaduto em formato de minhoca.

Os vizinhos do canteiro também perambulam, esmolam, praticam pequenos furtos, fazem fogueiras. “A gente não se mistura muito com eles”, revela Cícero, dando a entender que o clima é de hostilidade. De repente, surge um deles com metade de uma melancia e oferece para o homem que Ana havia denunciado como seu agressor. Ele sacode a cara de lua cheia e se nega a comer. Outro homem surge e ordena: “Não joga, não!”. Sem cerimônia, toma a fruta do outro que mal consegue se equilibrar nas próprias pernas e ameaça a tombar. Novamente sinto medo. Eles poderiam me notar e questionar minha presença em seu território. Mas estão mais preocupados consigo mesmo, um em sugar as últimas gotas daquela melancia, e outro em prolongar ao máximo o calor que a cachaça lhe provocava naquele momento.

Quando o céu fica cor de chumbo ele também lacrimeja. Estava assim, naquela sexta-feira, 29 de janeiro, quando vou procurar Ana pela manhã. Provavelmente ainda não tinha bebido naquele dia e não estava para muito papo. Cícero havia saído. Como muitas mulheres, ela tinha que ficar em “casa” para cuidar do que lhe pertencia: alguns papelões, a bolsa, o corote de pinga e a marmita de comida. Não sabia dizer onde o marido tinha ido. Tento puxar papo falando do tempo. “Agora chove todo dia, né?”. Ela ergue os ombros, revira os olhos e se conforma. “Fazer o que, né?”. Seu único lamento naquela manhã é o olho que coça.

O incômodo é com o olho que não vê, mas enxerga. A cegueira branca está, na verdade, nos olhos de quem a vê, mas não a enxerga. A cegueira daqueles que veem muito e não captam nada. A escuridão cotidiana de pessoas que vivem numa cidade que padece com o excesso de tudo. De uma sociedade que não percebe mais o que está a sua frente. Assim, ficar ali exposta não a incomoda. Poderia até afetar a gente, afinal, é ela que nos observa o tempo todo.

“Cadê a menina que sempre está com você?”, questiona. Confuso, respondo: “Não sei”. Afinal, sempre a procurei sozinho e ela devia estar me confundindo com algum membro de entidades assistenciais que ajudam pessoas como ela. “Deu o cano”, respondeu ela, com sua voz de tom grave e rouco, que, aliada com a maneira malevolente da sua fala, lembra a da Elza Soares. A frase arrancou um sorriso do meu rosto e fez com ela própria sorrisse, pela primeira vez, tornando meu riso ainda mais sincero.

Ela balança a cabeça e cantarola. Ignora solenemente minha presença. Entendo o recado e apelo: “A senhora está precisando de alguma coisa hoje?”. Ela podia precisar de tanta coisa, todo mundo precisa... Mas com um semissorriso ela faz que “não” com a cabeça e eu me despeço.

Vou tentar achar a “comunidade” da rua de trás que lhe oferta ajuda. Na padaria em frente, o comerciante de meia-idade, branco e de olhos claros também usa um movimento de cabeça para responder que não sabe de nenhuma organização que ajude os vizinhos. No comércio ao lado, a jovem loira é mais simpática. Ela até sorri. Mas também não conhece entidades ou pessoas que ajudem os moradores do Minhocão. A atendente também não sabe quem é Ana. E ela está logo ali, antes do fim do horizonte visto de seu balcão. “Eles incomodam vocês?”, interrogo. “De jeito nenhum, principalmente os daqui da frente”, analisa, prontamente. Percorro a Brigadeiro Galvão, “a rua de trás”, e não encontro nenhuma pista de organização governamental ou não governamental que ajude pessoas em situação de rua.

No dia seguinte, a tarde cai nublada e triste, sem muito a oferecer além de uma gostosa brisa. “Eles vem de turminha numa perua”, conta Ana, dando mais detalhes das pessoas que lhe trazem comida. Naquele sábado (29), no entanto, eles não tinham passado ainda. Antes que eu me penalize por ela, a mulher lembra: “Todo mundo aqui não comeu”, diz, apontando um a um daqueles com que dividem o mesmo espaço.

De repente, Cícero, que estava sentado perto do homem que “amola” a mulher, se exalta com algo. Ela pede desculpa para mim e solta em voz alta e forte. “Não é empregado de ninguém! Quer fazer os outros de empregado, esse miserável aí”, diz apontando novamente aquele homem negro e de barba por fazer que vive a menos de dois metros dela. Gordo e com má formação nas pernas, ele tem dificuldade de locomoção. Compro fácil o ódio de Ana, afinal ele tem cara de mau. “Nunca fez nada. Ela que é xarope, cabeça de cobra”, defende Cícero, com a naturalidade de quem sabe com quem está lidando.

Não entendi por que discutiam e Ana mudou de assunto. Contava agora que o marido ganha “uns trocados” trabalhando para barraquinhas de frutas e importados da China que ficam na rua ao lado do metrô. “Ele ajuda a limpar, trocar dinheiro. Faz tudo”, afirma. Segundo ela, os dois estão juntos desde “16 de julho de 99”. “Faz as contas aí”, pede. São quase onze anos de convivência, nove a menos do que o marido declara terem.

“E vocês se dão bem?”, pergunto. “O problema é só esse aí”, faz gesto com a cabeça apontando novamente o homem com jeito de ruim e emenda: “o resto tá tudo bem”. Ninguém mexe com ela e Cícero, lembra. Questiono, então, o que Ana sonha para o futuro, e sem pestanejar demonstra sintonia com a sociedade que a cerca: “eu quero dinheiro!”. Faz movimento de circunferência com os dedos, para contar que identidade, CPF e carteira de trabalho foram roubados. Ela lembra que já conseguiu o registro de nascimento e que agora pretende tirar novamente o restante dos documentos para conseguir receber sua aposentadoria.

Meu coração acelera e me bate uma tristeza. Meus olhos me traem. Agora, sou eu que lacrimejo. Talvez chorar me fizesse bem, mas não me permito tanto. Nem sei ao certo por que me emocionei naquele momento. Talvez por todos os silêncios que ela me provoca. Talvez pela necessidade de alguém ali chorar um sentimento, já que suas lágrimas eram decorrentes de um problema físico. Um sentimento, como escreve Clarice Lispector, de que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir.

Eu, que senti dó pela sua cara de carente e me culpei por não ter feito nada por meses, percebia que talvez quisesse ajudá-la por querer ficar bem comigo mesmo e não porque quisesse vê-la bem de verdade. Agora, eu me doía por ter sua própria história e não se contentar com a que eu imaginei para ela.

A dessa mulher que hoje traja calça jeans, blusa rosa e meia começou em Morro Agudo, no interior paulista. “Todo mundo chama lá de Agudos”, ressalta. Quando veio para São Paulo, morou na Vila dos Remédios e casou-se pela primeira vez. O filho nasceu com problema do coração e morreu aos dois anos. As reticências com que resume a história fazem com que ela se esgote antes dos nomes, datas e detalhes.

Volto a perguntar sobre a “comunidade” que a ajuda. “Fica na Rua Vitorino Carmilo. Fiz exame lá uma vez”, relata. Hoje o olho “dói e coça” e os remédios que recebeu no hospital foram roubados. Ivo, o homem gordo que presta auxílio às pessoas em situação de rua, a visita todos os dias. “Estou esperando ele me levar para o hospital”. A tarde cai e, em poucas horas, irá escurecer. Agora que sei o nome da rua da comunidade, resolvo procurá-la novamente. “Tenho que ir. Tudo de bom para a senhora”, desejo do fundo do coração, como se aquilo realmente fosse possível. “Para você também”, devolve ela.

Passava das 19 horas e as portas metálicas daquela rua estavam todas abaixadas. Pouca gente circulava pela via, que percorro até o fim. Moradores das casas e das calçadas, comerciantes, transeuntes, ninguém conhece a entidade que ajuda as pessoas que moram no Minhocão. Sem nenhum sinal, volto, indo para o lado contrário da rua. Encontro uma unidade de Assistência Médica Ambulatorial, a AMA de Santa Cecília. Está fechada, só atende nos dias de semana. Será que eles fariam trabalho assistencial também? A unidade está em reforma e nenhum guarda toma conta do local.

A dúvida dura poucos minutos. A uma quadra dali, há o Pronto-Socorro Municipal da Barra Funda, onde resolvo adentrar para me informar na recepção. “Você tem que procurar a AMA durante a semana. Lá eles devem fazer esse trabalho, mas aqui atrás também tem um órgão que ajuda esse tipo de moradores”, responde o atendente, dando a primeira pista do dia. No número 40 da Rua Albuquerque Lins, uma fachada de tijolinhos a vista, esconde uma garagem onde Kombis brancas estão estacionadas e um grupo de quatro pessoas de jaleco conversa.

Por uma janela, pergunto ao guarda o que funciona ali, e ele confirma. “É um órgão do governo em que médicos e enfermeiros se reúnem para atender os moradores de rua”. Pergunto se o Ivo trabalha com ele e responde que não o conhece. Peço para entrar e falar com uma daquelas pessoas. O guarda pergunta quem sou e me apresento como jornalista. Ele mesmo vai falar com o grupo e volta analisando minhas roupas. “Você tem que procurar a Secretaria de Saúde. Aqui não podemos passar nenhuma informação”, diz, com um sorriso malicioso que parece pensar que aquele sujeito de chinelo Havaianas, short casual e camiseta vermelha não é jornalista coisa nenhuma.

Agradeci e fui embora dali, com a sensação de ter morrido na praia. Voltava cabisbaixo em direção ao elevado. De fora devia parecer um sujeito excêntrico. Jovem, migrante, cheguei em São Paulo há menos de um ano, vindo de uma família simples de Campo Grande (MS). Ainda me impressionava com a pequenez e com a grandeza dessa metrópole. Os tipos humanos e as disparidades sociais, que outrora me levaram a escolher o jornalismo como profissão, agora recheavam meu cotidiano de morador de um bairro de classe média alta, localizado ao lado de um viaduto, que abriga parte da extrema pobreza da cidade. Minha rotina estava tomada por contradições.

De uma das calçadas, um homem interrompeu meus pensamentos e me pediu dinheiro para comprar comida. “Não tenho”, afirmei com tanta sinceridade que ele agradeceu. A poucos metros dali, um churrasco desses que têm mais cheiro do que consistência cruzou minhas narinas. Com meu bloquinho pressionado contra o queixo, estava de volta a Avenida General Olímpio da Silveira.

Ali, há grafites elaborados nas colunas de sustentação do viaduto, que delimitam o quadrado dividido entre Ana e outras dez pessoas. Uma cara com grandes olhos exibe palavras representativas para o local "socorro", "corrupção", "povo", "loucura", "cegueira", "vazio" e "desprezo".

Do outro lado, uma cabeça azul é servida em um prato. O sangue do desenho escorre, enquanto um garfo e uma faca se preparam para saboreá-la. Dessa cabeça, surgem outras, num emaranhado de imagens, das quais se destacam as palavras: “eu tenho vergonha do Senado brasileiro” e “cidade desigual”. Assinadas por “mundano”, as figuras são o único lampejo de uma área que perdeu o colorido para desafogar o trânsito.

Os prédios antigos e imponentes do entorno estão sujos e há anos não recebem um trato. Ao invés de tinta, são recobertos por mofo e pichações. Lugar de gente que decidiu abandonar a vida social como conhecemos e da sociedade corresponder com descaso. No meio dessa falta de cuidado há muita história, e ela só existe por que ainda resta vida.

No dia seguinte, volto ao órgão governamental que atende pessoas em situação de rua. Ao me apresentar como morador da região, fui melhor atendido. Apesar de ter passado o horário de ir embora, uma das enfermeiras me recebeu. “Você também é morador de rua?”, perguntou ela. Negro, barba e roupas simples. Assim eu poderia ser descrito naquele fim de tarde, assim são também todos aqueles que moram em volta de Ana. Ela tentava me jogar à margem. Pela primeira vez, me senti como se estivesse do outro lado. O olhar de desprezo dela diminuiu quando retomei minha posição e respondi um “não” seco. Meu medo inicial poderia ter razão e aquela pergunta ecoou dentro de mim por algum tempo.

A enfermeira atendia a área da República, não conhecia nenhum Ivo e não sabia quem era Ana. A mulher anotou o que relatei em uma folha sustentada por uma prancheta. Comprometeu-se em visitar o lugar indicado no próximo dia de trabalho e procurar aquela senhora com problema nos olhos.

O atendimento assistencial especializado existe, mas será que funciona? Mesmo não sendo tão omisso quanto pensei, o Estado atendia, mas não sabia quem eram aqueles humanos com que lidava. Não tinham rostos, histórias e nomes. Pessoas para quem o significado de Estado não faz mais diferença, assim como também não importa de onde saem quem os atendem, os números, as datas e uma série de burocracias e objetividades adotadas por aqueles que precisam do concreto para ter certeza do que é real.

Minha angústia poderia ser resolvida acompanhando o caso, como se o problema de Ana estivesse em seus olhos. Se eles parassem de chorar, talvez eu não me incomodasse mais, finalmente aceitando sua posição de Não Ser e de perdê-la no meio dessas pessoas invisíveis e cor-de-concreto. Talvez por ela parecer um dos meus e eu parecer um deles, eu continuarei sentindo algo cada vez que passar por ali.

Ana continuaria ignorando meus sentimentos. Ela é uma mulher que não precisa de minha piedade ‘bondosa’, da minha interferência ou ajuda. Do alto do seu livre arbítrio, ela me fez entender que pode sim morar embaixo do minhocão, chorar copiosamente, viver suja e despenteada e levar dias melhores do que se tivesse em uma casa com a família. O que havia causado o rompimento? Ela tinha o direito de não dizer a um estranho. Devia ter razão em não querer lembrar ou saber se realmente ocorreu algo que a levou para a rua ou simplesmente decidiu chorar seus dias ali.

Ela até permitia que mais gente acompanhasse suas lágrimas, mas sem que precisássemos também chorar por ela. Com Ana, talvez esse tenha sido meu erro, precisava de um expoente para extravasar a tristeza que a cidade me causava, mas ela não aceitava estar nessa posição. Chorava, mas gozava do seu cigarro, da sua pinga, do seu homem, e sobrevivia às mudanças de tempo na rua com o que lhe restou de dignidade – e para ela, aquilo era muito. Ela não precisa de mim, nem de você. Ana, que agora descubro ser Pereira, é ela, com sua vida, seu mundo e suas lágrimas.

*Essa matéria foi produzida como trabalho da pós-graduação em Jornalismo Literário, da Academia Brasileira de Jornalismo Literário, e publicada no site Texto Vivo: http://www.textovivo.com.br/detalhe.php?conteudo=fl20101210165935&category=autobiografica

Confira os bastidores deste ensaio no meu outro blog.

segunda-feira, 22 de março de 2010

A übermodel do mercado de capitais


Sorridente, parece mais novo do que nas fotos e nas suas imagens captadas pelas câmeras de TV. O cabelo é castanho claro com um quê de desalinhado na nuca, como daquelas pessoas que tem como tique bagunçar a parte de trás do penteado. As costeletas permanecem brancas, como se fizessem parte de uma de suas muitas superstições. Com uma mãe alemã, Eike é desses brancos que parecem gringos à primeira vista e até por isso surpreende ao falar um português sem qualquer sotaque.

Sorridente. Não tem rugas, nem plásticas aparentes. Como a maioria naquele recinto, usa a camisa azul com a inscrição OSX com um sol ao lado. Essa é a sua nova empresa de logística que deverá construir estaleiros para a empresa petrolífera do grupo OGX. O sol é o símbolo que faz parte da logo de todas as outras ideias-empresas, e, assim como o “X” da multiplicação, faz parte de sua superstição assumida. O visual jovial é completado por uma discreta camiseta preta embaixo da camisa, uma calça jeans e um sapato. Não precisa conhecer marcas, nem entender de moda, para perceber que ele custou caro (melhor nem arriscar quanto).

O relógio é de ouro, mas não carrega o visual nem o deixa com cara de ostentador. Ele bem que poderia. Com US$ 27,5 bilhões em sua conta bancária, Eike Batista pode muito coisa. Hoje o homem mais rico do Brasil, o 8º mais rico no mundo, está mais preocupado em sorrir para os fotógrafos, cumprimentar a todos e deixar seus pequenos olhos azuis ainda mais brilhantes. Mediano e magro esconde as mãos no bolso como um sinal de não estar tão à vontade em meio a tantos cliques. Mesmo assim concorda em posar em frente ao quadro que exibe a descomplicada e quase infantil logotipo de sua nova empresa. Ele sorri.

– É a Gisele Bündchen do mercado de capitais –, dispara a assessora que o acompanha e evita que fale com jornalistas por conta do período de silêncio exigido pela Comissão de Valores Monetários (CVM) no período de oferta pública inicial de ações (IPO, na sigla em inglês) da nova empresa.

No salão da BM&FBovespa, na parte histórica do centro de São Paulo (SP), Eike circula entre engravatados, jornalistas e câmeras. Está ladeado de painéis eletrônicos. Um deles transmite a Bloomberg, canal de TV norte-americano que exibe notícias econômicas para todo o mundo. Uma equipe da emissora prepara um link ao vivo para transmitir o início das negociações OGX na bolsa valores naquele 23 de março de 2010. A operação representa mais alguns bilhões para sua conta e dinheiro para tornar possível uma empresa na indústria naval que precisa começar do zero. Na verdade, zero não. A expectativa é que só com o lançamento de ações sejam captados no mercado R$ 2,8 bilhões. Dinheiro que sairá dos investidores qualificados, termo que os diferencia dos profissionais que representam corretoras dos pequenos investidores. Os R$ 2,8 bilhões até parecem muito dinheiro, mas são bem menos do que os R$ 5,5 bilhões estimados pelo empresário inicialmente.

Eike sobe sorridente no púlpito da BM&FBovespa para seu discurso. Lembra que não poderá falar muito sobre a nova empresa, justificando que da última vez que o fez, tomou multa da CVM. Prova que os bilionários também não gostam de pagar taxas, mesmo que sejam insignificantes perto de suas fortunas. Agradece à equipe que, “como hamsters atômicos”, correram os cinco continentes para atrair investidores para a nova a empresa. Mas não é um agradecimento qualquer. O obrigado, assim como a conta bancária do empresário, é superlativo: “Meu trilhão de obrigado a vocês!”.

O empresário fala com orgulho que suas companhias geram milhares de novos empregos criando um "Brasil novo". "São empresas 100% dedicadas ao Brasil. Todas demoram de
três a quatro ano para gerar caixa, mas esse dinheiro vai ser aplicado no País", afirmou. Eike mandou ainda um recado para os investidores que criticam suas empresas afirmando que elas são apenas projetos. "Eles dizem que são apenas ideias, ventos. São ventos que vão gerar muito ouro lá na frente", garantiu. Lembra que as regras do mercado brasileiro permitem captar recursos com investidores qualificados antes de começarem a produzir. "A história mudou, não há mais investimentos apenas em empresas que geram caixa. Nós mostramos que é possível fazer diferente”.

No púlpito, o presidente da BM&FBovespa, Edemir Pinto, lê seu discurso auxiliado por um óculos no meio do nariz. Ele elogia a atitude do empresário que realizou IPOs de suas empresas (MMX, MPX, OGX, LLX e a recém-chegada OSX) nos últimos anos e lhe concedeu um novo título: “Ele é o símbolo do novo capitalismo brasileiro. A OGX, por exemplo, teve o maior IPO da história captando R$ 6,7 bilhões", contabilizou. Eike não rejeitou o título, mas lembrou que não é o único empresário do País a investir. "Temos vários excelentes projetos e empresários. Estamos puxando esse trem juntos", disse.

Ao final do discurso, os diretores da nova companhia foram chamados para subirem ao púlpito ao lado de Eike. São dez ao todo. É hora de tocar o sino e marcar a abertura do pregão e o início dos negócios da nova companhia. O sinal é potente e acompanhado por palmas contagia com um leve arrepio, mesmo que você não faça parte dos bilhões que serão ganhos com a operação. Eike sorri e balbucia um “obrigado, obrigado, obrigado”. Abre a boca e sacode a cabeça num movimento de “yes” sorridente, ainda aperta os sinos com o dedo de uma das mãos. Com a outra mão estende os dedos em sinal de “V”, símbolo de vitória, de paz e amor, gesto tão característico da übermodel das passarelas, Gisele Bündchen. Ele sorri, como se ainda fosse aquele garoto que ganhou seu primeiro milhão aos 23 anos, como conta sua história.

O sino para. As palmas continuam. O pregão virtual está aberto. Ele brinda com champagne barato e copos de vidro. Segue simpático em direção aos jornalistas, encara as câmeras de TV e tira as dúvidas que surgem. Mesmo a OSX tendo como função principal a construção de estaleiros para serem utilizados para exploração de petróleo da OGX, Eike garante que as empresas do grupo são “estanques”, gerando caixas independentes, mas com sinergias entre si.

Aproveitou também para aguçar a ambição dos repórteres presentes e lembrou que qualquer pessoa pode investir em suas empresas. "Vocês são investidores em potencial. Todos podem fazer parte desse negócio. É só estudar qual o melhor investimento para si, assim como estudamos para criar novos projetos". Questionado por mim se o grupo estuda criar novas companhias, ele não descartou a hipótese. "Somos um celeiro de novas ideias", respondeu, abrindo brechas para interpretações.

Quando não pôde mais responder as perguntas feitas pelos jornalistas e achando que já havia cumprido sua missão de falar com a imprensa, terminou o discurso parecendo uma criança que acaba de ganhar uma gincana no programa da Xuxa – a apresentadora que também faz questão do “X” no título de seus produtos: “Quero agradecer meus dois filhos, minha namorada e a presença de vocês”, solta, saindo pela tangente, com sua cara de moleque e com sorriso sapeca no rosto.

A matéria foi publicada no site Jornalirismo. Veja no link:

http://jornalirismo.terra.com.br/jornalismo/14/942-a-uebermodel-do-mercado-de-capitais

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Lírico, documentário revela Manoel de Barros biológico


Diretor diz que precisa de apoio local para filme ser exibido em Campo Grande

Após três anos de produção, onze cortes e exibição na Mostra de Filmes Internacional de São Paulo em 2008, o filme “Só Dez Por Cento É Mentira”, sobre a vida e obra do poeta Manoel de Barros, teve sua pré-estreia na última quinta-feira (14) em São Paulo. Mas, por enquanto, os telespectadores sul-mato-grossenses não poderão assistir ao filme. Ele estréia apenas no Rio de Janeiro e em São Paulo no dia 22 de janeiro e espera a aceitação do público dos dois maiores centros do País para garantir recursos para ir às outras capitais.

Em Campo Grande (MS), cidade do poeta, no 7º Festival de Cinema que começou sexta-feira (15), nenhum sinal da poesia e da obra sobre de Manoel. “Não tem previsão, não tem dinheiro para isso. Falta convite, vamos ver se acontece”, esquiva-se o diretor Fábio Cézar, sobre a possibilidade de exibição na Capital. Ele afirma que, com poucos, recursos seria mais viável a exibição do longa no formato digital. “Até onde sei não existe uma sala com essa possibilidade na cidade. Teria que haver uma projeção em outro espaço, mas para isso precisa de interesse das pessoas de lá”, diz.

Enquanto a viabilização para exibição da produção em Campo Grande não se concretiza, o documentário revela o ser biológico escondido pelo poeta para paulistanos e cariocas. Um filme que segue o manual de Manuel. “Há várias maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira”, revela uma das passagens.

Com imagens lúdicas, personagens inventados e trilha sonora própria, o documentário embarca nas palavras do poeta e se inspira nela para inventar personagens. Não é um documentário sobre a poesia de Manoel, mas sim, com a sua poesia. Há nele, o inventor de objetos e o guia turístico corumbaense, interpretados por atores que simulam fabricar esticador de horizontes ou guiar turistas pelas paisagens inventadas pelo poeta na cidade pantaneira. E que ao final, se descobre que não passa de um engodo. Um lírico e perspicaz engodo, mas um engodo.

Talvez venha daí a discussão se o filme é documentário. “É apenas um filme”, repete o diretor, com medo de que o rótulo “documentário” espante o público. “Ainda há um estigma, quando se fala que é documentário, as pessoas imaginam algo da TV Cultura. Esse é um filme lírico que tem como protagonista a linguagem e gostaria que assim fosse chamado: "filme”, completa Pedro Cézar.

No “filme”, o diretor começa revelando como conseguiu contato com Manuel, conhecido por sua aversão às entrevistas. “Passei vários dias em Campo Grande tentando falar com ele. Ele pedia que eu fizesse o filme baseado na sua obra, dizia que o ser biológico não interessa, só o letral. Eu respondi, que era só um sonho. Foi quando ele fez um silêncio e topou conversar comigo”, narra o diretor enquanto imagens do céu visto do alto da Avenida Afonso Pena ilustram a tela. A grandiosidade do pôr-do-sol campo-grandense contrastam com aquilo que o autor escreve. “Só as coisas rasteiras me celestam”, diz um dos trechos citado no filme para lembrar que suas palavras se dedicam à pequenez das coisas miúdas.

Quando fala, Manuel justifica sua aversão às entrevistas. “Eu falo e escrevo absurdez. A palavra oral não dá rascunho”. Arredio como uma criança arteira, o poeta lembra que sua inspiração remete a essa fase. “É dela que vem as primeiras sensações, os primeiros ruídos. Só tive infância”, ressalta. Ele lembra que sua obra não é biográfica e que só possui imagem inventada. “Só tenho uma coisa a dizer: 90% do que escrevo é invenção, só 10% é mentira”, escreve, dando deixa para o nome do filme que o retrata. E para quem tenta interpretar o que escreve, ele adverte: “Poesia não é para compreender é para incorporar. Razão é a última coisa da poesia”. Com sua simplicidade peculiar, o poeta diz que não que dar aos leitores informações, mas encantamentos. “Quem descreve não é dono do assunto, quem inventa é”.

Manoel conta que pôde se dedicar integralmente à escrever quando conseguiu viver dos rendimentos de sua fazenda no Pantanal. “Comprei o ócio e virei vagabundo profissional”, diz. Ele acredita que a poesia é a “virtude do inútil” e jura que não sabe o que é inspiração. “Sou procurado pelas palavras, que se apaixonam por mim. Só conheço inspiração pelo nome”, revela. No “lugar de ser inútil”, como denomina seu escritório, Manoel se abre em risadas e mostra os poemas. “É pra isso que eu presto”.

Para os que dizem que seus versos retratam a natureza e o Pantanal, ele rebate afirmando que não é poeta de paisagem, ecológico e que não quer fazer folclore. “Poesia é filha da linguagem não da paisagem, eu invento o meu Pantanal”, diz. Também lembra que seus poemas não formam um soneto e não fazem rima, mas são especialistas em fazer “coisificação do ser, humanização das coisas e vegetalização do ser”.

Entre a revelação de que toma uma dose de pinga ou whisky diariamente, o ser biológico lembra da admiração por Charles Chaplin. “O vagabundo de Chaplin é o herói do nosso século, o desheroi”. Mas o alterego do poeta é Bernardo, caboclo que trabalhou nas fazendas de Barros, personagem presente na sua obra. “Bernardo é quase árvore, o silêncio dele é tão grande, que os passarinhos ouvem de longe”, escreve. Noutra poesia, torna a versar sua admiração pelo pantaneiro. “Pode um homem enriquecer a natureza com a sua incompletude?”

No documentário, o admirador de deseheróis inspira e arranca depoimentos apaixonados da poeta e atriz Elisa Lucinda, do cineasta Joel Pizzini, dos filhos Martha Barros, ilustradora dos livros do pai, e João Wenceslau, morto em acidente de avião, e da mulher, Stella Barros. Eles falam de um Manoel que gostaria de ser lembrado como poeta por considerar que só sua poesia pode salvá-lo da perenidade biológica. E é dela que vêm os melhores silêncios provocados pelo filme.

O tempo só anda de ida

Me procurei a vida inteira e nunca consegui encontrar
- pelo que fui salvo

Imagens são as palavras que nos faltaram

Repetir, repetir até ficar diferente
Repetir é dom do estilo

Olho vê
Lembrança revê
Imaginação transvê
O mundo precisa transver

[Correio do Estado/18/01/2010]

segunda-feira, 6 de julho de 2009

O Sertão Possível

*
Terra branca e rachada, plantas secas, rios que só estão presentes em nomes de placas. Esse é o cenário de Independência, município, a 309 quilômetros de Fortaleza, no Ceará. Mesmo para quem mora no estado onde fica o Pantanal, a maior área alagada do mundo, a imagem soa familiar, já que o sertão nordestino é alvo de diversas reportagens que mostram a realidade da região.

Não dá para negar: o lugar que utiliza galhos secos como cercas tem um clima de tristeza. A melancolia, no entanto, é logo espantada por um coral de crianças que entoam uma música e parecem querer mostrar outras possibilidades do semi-árido brasileiro.
- Seja bem vindo a casa é a sua, fique a vontade - cantam os alunos da Escola Família Agrícola Dom Fragoso, em ritmo de ciranda, com sotaque local e orgulho nos olhos.

Mas em um cenário como esse, de que elas se orgulham? Elas logo se apressam em mostrar o motivo. No auge da seca, que já dura mais de sete meses, o que é comum todos os anos na região, os 72 alunos da escola conseguem cultivar frutas, verduras, hortaliças e ainda criar porcos, cabritos e galinhas. O segredo é a perseverança de um povo guerreiro que buscou várias alternativas para conseguir água em um local em que choveu apenas durante uma semana em 2007.
- Fazemos uma base embaixo do solo por meio de um buraco profundo, colocamos lona para proteger e represamos a água encontrada – relata Adão (foto).

O garoto de 17 anos lembra muito Elieldo, de 28. A semelhança não é física, mas pode ser percebida a olhos nus. Os dois moram na mesma região do país, a mais de três mil quilômetros de Campo Grande (MS), mas não se conhecem. Ambos são líderes natos e residem no interior do interior do Brasil e lá pretendem ficar.

Adão Sérvulo é aluno da 7ª série da Escola Família Agrícola Dom Fragoso, localizada na área rural do município de Independência. Já Elieldo Gonçalves é um dos diretores da Associação Comunitária de Pequenos Produtores de Várzea do Toco, comunidade que abriga 57 famílias e fica no outro extremo do município de Independência.

Os dois são personagens de uma história que se constrói no dia-a-dia, em um local em que o sol está presente em todos os lugares, inclusive nas pessoas: no cheiro, no tom e na textura da pele. Eles usam calça jeans e camisa, vestem o rótulo de sertanejo e têm brilho no olhar e alegria na voz. Ambos nasceram com o pé no chão, a mão na enxada, o sol na cabeça e muita determinação.

Elieldo é conhecido em sua comunidade como “chave”, afinal tudo o que os outros moradores - mesmos os mais velhos - vão fazer consultam-no. Elieldo é o responsável por ativar a mandala, tecnologia utilizada para irrigar a água para as hortaliças.

É ele também quem liga a luz e faz as contas da associação. É uma pessoa que vive lá, longe dos olhos dos governantes, da multidão, e constrói uma vida tentando ser justo e honesto, com admiração ao lugar em que mora. – Já trabalhei como garçom em Fortaleza, mas gosto daqui. É onde sou feliz e não quero sair. Vamos aprendendo as técnicas de plantar no semi-árido e repassando para os outros.

Na casa simples de Elieldo, assim como na maior parte das residências de Várzea do Toco, há uma antena parabólica. Ele, que é solteiro e mora com os pais, tem na sala aparelho de som, televisão, DVD, entre outros aparelhos eletroeletrônicos adquiridos a partir de 2004, quando chegou a luz na comunidade.

O porta-CDs abriga clássicos do forró local como “Limão com Mel” e ícones da música sertaneja como “João Mineiro e Marciano”. A família Gonçalves possui também sacos de alho, panelas grandes e fogão de barro na cozinha. No quarto, além da cama e do guarda-roupa há um ventilador e um violão, que o sertanejo arrisca tocar para os amigos nas noites enluaradas de Independência.

Tudo que acontece na comunidade é decidido em conjunto. A partir da união dos moradores da Várzea do Toco, que fundaram a associação há 12 anos, foi possível conseguir mais do que a luz, ou o que qualquer outro programa assistencial de governo pode dar a uma pessoa. Eles conquistaram a dignidade.

– Passamos a produzir na horta comunitária o que comemos. Vendemos o excedente e dividimos o dinheiro. Fizemos a convivência com o semi-árido se tornar possível. Valorizamos o lugar onde vivemos e temos orgulho daqui – diz a professora Ana Neri, 27, moradora da Várzea do Toco e secretária da associação de moradores.

Driblando o tempo

Tanto na escola, onde Adão passa 15 dias seguidos, quanto no Assentamento Pintada, onde mora com os pais, e passa os outros 15 dias do seu mês, são utilizadas cisternas para captar a chuva. Por meio de calhas que recolhem a água que cai sobre o telhado das casas elas armazenam até seis litros. No assentamento onde Adão mora, são 31 reservatórios, que fazem parte do programa “Um Milhão de Cisternas Rurais”, da Articulação no Semi-Árido Brasileiro (Asa), movimento que reúne 750 entidades, sindicatos e associações nos nove estados da região Nordeste, além de áreas de Minas Gerais e do Espírito Santo, que fazem parte do semi-árido brasileiro.

Ao todo, foram construídas pelo programa 220 mil cisternas em 1.031 municípios da região, beneficiando 1 milhão de pessoas. O objetivo do projeto é chegar a 1 milhão de cisternas, atingindo 5 milhões de pessoas. - A intenção é conviver com a região por meio de organização política e de produção, afinal, os açudes são rasos e vão evaporando ao longo do ano. Eles também não permitem a distribuição de água, que é fundamental para a segurança alimentar. Com a cisterna permitimos a democratização desse bem - afirma o articulador da Asa, Lourival Almeida.

Na Escola Família Agrícola Dom Fragoso, a cisterna está vazia e aguarda o “inverno” no sertão, período de chuva, que com sorte vai de janeiro a maio. Enquanto, a cisterna está vazia, a água é captada de um açude, que presencia diariamente um belo espetáculo de pôr-do-sol. Hora em que as crianças descansam das atividades escolares e jogam uma pelada.

Mas aqui, os verdadeiros gols são feitos em áreas experimentais em que cada aluno produz uma cultura agrícola na comunidade onde mora e ajuda a colocar comida na mesa de casa. - Na minha casa não fazia nada, começamos a produzir verduras depois que vim para escola. Agora cada dia minha mãe inventa uma comida diferente – diz, com sorriso tímido, Jaciara Pereira Sousa, 12, aluna do 7º ano da escola.

As lições presentes nos livros didáticos, nas paredes, na lida do campo, na ideologia e no hino da escola, são decoradas pelos alunos e estão na ponta da língua: “A Escola é fruto da luta do povo que quer ver um mundo novo, que ninguém tenha mais fome. Hoje uma conquista nossa do trabalhador da roça que quer ser cidadão”.

*O jornalista viajou ao Ceará em novembro de 2007 à convite da Organização Não-Governamental Catavento, agência da Rede Andi Brasil no Ceará, para participar da “Oficina Itinerante Convivendo com o Semi-Árido”. Esta matéria e as outras produzidas sobre o assunto nunca foram publicadas no jornal em que trabalhava na época. Nenhuma justificativa plausível foi dada pela diretoria do impresso.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Próxima parada: Terminal Morenão

Esse lugar é o centro das contradições. É aqui que se mostra o preconceito, que se vive a diversidade, que não se respeita os direitos. É lá que se discrimina, que é possível ter alegrias e sofrimentos.

É por ali que passa a travesti indo para o trecho, a patricinha para a faculdade, o peão para a cidade, o hippie para o Parque de Exposições, a doméstica para a casa da patroa...

E acolá (bem em frente ao terminal), o grafiteiro colore o prédio abandonado, o bombeiro treina, o fanático prega, o carteiro seleciona correspondências, o mecânico se suja, o negro carrega caixas com verdura e a menina que terminou o Ensino Médio vende brinquedos.

A senhora tem a coluna encurvada, os cabelos brancos, os olhos claros. A pele branca é marcada por rugas. O único traço de beleza são os miúdos olhos verdes e a presilha que prende o coque: - É menino ou menina, ali de vermelho? – interroga, se atrevendo a interromper o silêncio e invadir o pensamento alheio.

- Menino – é a resposta. Ela se espanta e olha mais uma vez sacudindo a cabeça e sentenciando: - A gente vê cada coisa nesse mundo! Ela volta ao silêncio. A cabeça daquele que foi questionado fervilha: - É evangélica! – conclui.

O menino de camiseta vermelha tem cabelo curto, usa calção e chuteira e tem trejeitos masculinos. Está junto a um grupo de cinco meninos. Um deles é bem mais alto e se destaca do grupo. É magro e usa cabelo cumprido, boné e mochila. Eles não têm mais do que 16 anos. Outro é visivelmente extrovertido, falante e brincalhão. Ele faz “carinho” no menino de vermelho. Os cinco meninos atravessam o terminal conversando. O extrovertido massageia a mão do de vermelho. O gesto simples entre dois amigos escandaliza a velha. A camisa de uma deles denuncia: “handebol”. São meninos que jogam handebol e utilizam as mãos para as jogadas... Mas os olhos daquela senhora já estão gastos e viciados e não conseguem mais ver. No que ela enxerga, há diferença.

Cabelos exageradamente loiros, praticamente brancos. Muito escovado. O rosto exibe traços marcantes, rugas fortes e bem definidas. Com jeito sexy, se escora na barra do ônibus. As roupas são decotadas e chamativas. Tem mais de 50 anos, é negra e não poderia ser taxada de bonita. “É uma trabalhadora do sexo” – pela maneira que encara, pelo olhar lânguido e perdido, pela boca excessivamente vermelha, pelos seios apontando pela blusa sem sutiã...

O lobo-mau é fiscal no terminal. A rima não é intencional. Pedro cuida dos horários dos ônibus no Terminal Morenão, em Campo Grande. Nas horas vagas ele é o lobo-mau da peça “Chapeuzinho Vermelho”. Ele é ator, aqui é mais um que passa despercebido.

Outro usa gel, topete, tem olhos claros, cara de menino e lembra um amigo de infância. Também passa em meio as pessoas, organizando, anotando e se perdendo na multidão. Usam camisa azul e calça social preta. No meio da multidão que espera um ônibus, todos são mais um, na sua diferença e igualdade. Eu? Sou mais um deles.