segunda-feira, 6 de julho de 2009

O Sertão Possível

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Terra branca e rachada, plantas secas, rios que só estão presentes em nomes de placas. Esse é o cenário de Independência, município, a 309 quilômetros de Fortaleza, no Ceará. Mesmo para quem mora no estado onde fica o Pantanal, a maior área alagada do mundo, a imagem soa familiar, já que o sertão nordestino é alvo de diversas reportagens que mostram a realidade da região.

Não dá para negar: o lugar que utiliza galhos secos como cercas tem um clima de tristeza. A melancolia, no entanto, é logo espantada por um coral de crianças que entoam uma música e parecem querer mostrar outras possibilidades do semi-árido brasileiro.
- Seja bem vindo a casa é a sua, fique a vontade - cantam os alunos da Escola Família Agrícola Dom Fragoso, em ritmo de ciranda, com sotaque local e orgulho nos olhos.

Mas em um cenário como esse, de que elas se orgulham? Elas logo se apressam em mostrar o motivo. No auge da seca, que já dura mais de sete meses, o que é comum todos os anos na região, os 72 alunos da escola conseguem cultivar frutas, verduras, hortaliças e ainda criar porcos, cabritos e galinhas. O segredo é a perseverança de um povo guerreiro que buscou várias alternativas para conseguir água em um local em que choveu apenas durante uma semana em 2007.
- Fazemos uma base embaixo do solo por meio de um buraco profundo, colocamos lona para proteger e represamos a água encontrada – relata Adão (foto).

O garoto de 17 anos lembra muito Elieldo, de 28. A semelhança não é física, mas pode ser percebida a olhos nus. Os dois moram na mesma região do país, a mais de três mil quilômetros de Campo Grande (MS), mas não se conhecem. Ambos são líderes natos e residem no interior do interior do Brasil e lá pretendem ficar.

Adão Sérvulo é aluno da 7ª série da Escola Família Agrícola Dom Fragoso, localizada na área rural do município de Independência. Já Elieldo Gonçalves é um dos diretores da Associação Comunitária de Pequenos Produtores de Várzea do Toco, comunidade que abriga 57 famílias e fica no outro extremo do município de Independência.

Os dois são personagens de uma história que se constrói no dia-a-dia, em um local em que o sol está presente em todos os lugares, inclusive nas pessoas: no cheiro, no tom e na textura da pele. Eles usam calça jeans e camisa, vestem o rótulo de sertanejo e têm brilho no olhar e alegria na voz. Ambos nasceram com o pé no chão, a mão na enxada, o sol na cabeça e muita determinação.

Elieldo é conhecido em sua comunidade como “chave”, afinal tudo o que os outros moradores - mesmos os mais velhos - vão fazer consultam-no. Elieldo é o responsável por ativar a mandala, tecnologia utilizada para irrigar a água para as hortaliças.

É ele também quem liga a luz e faz as contas da associação. É uma pessoa que vive lá, longe dos olhos dos governantes, da multidão, e constrói uma vida tentando ser justo e honesto, com admiração ao lugar em que mora. – Já trabalhei como garçom em Fortaleza, mas gosto daqui. É onde sou feliz e não quero sair. Vamos aprendendo as técnicas de plantar no semi-árido e repassando para os outros.

Na casa simples de Elieldo, assim como na maior parte das residências de Várzea do Toco, há uma antena parabólica. Ele, que é solteiro e mora com os pais, tem na sala aparelho de som, televisão, DVD, entre outros aparelhos eletroeletrônicos adquiridos a partir de 2004, quando chegou a luz na comunidade.

O porta-CDs abriga clássicos do forró local como “Limão com Mel” e ícones da música sertaneja como “João Mineiro e Marciano”. A família Gonçalves possui também sacos de alho, panelas grandes e fogão de barro na cozinha. No quarto, além da cama e do guarda-roupa há um ventilador e um violão, que o sertanejo arrisca tocar para os amigos nas noites enluaradas de Independência.

Tudo que acontece na comunidade é decidido em conjunto. A partir da união dos moradores da Várzea do Toco, que fundaram a associação há 12 anos, foi possível conseguir mais do que a luz, ou o que qualquer outro programa assistencial de governo pode dar a uma pessoa. Eles conquistaram a dignidade.

– Passamos a produzir na horta comunitária o que comemos. Vendemos o excedente e dividimos o dinheiro. Fizemos a convivência com o semi-árido se tornar possível. Valorizamos o lugar onde vivemos e temos orgulho daqui – diz a professora Ana Neri, 27, moradora da Várzea do Toco e secretária da associação de moradores.

Driblando o tempo

Tanto na escola, onde Adão passa 15 dias seguidos, quanto no Assentamento Pintada, onde mora com os pais, e passa os outros 15 dias do seu mês, são utilizadas cisternas para captar a chuva. Por meio de calhas que recolhem a água que cai sobre o telhado das casas elas armazenam até seis litros. No assentamento onde Adão mora, são 31 reservatórios, que fazem parte do programa “Um Milhão de Cisternas Rurais”, da Articulação no Semi-Árido Brasileiro (Asa), movimento que reúne 750 entidades, sindicatos e associações nos nove estados da região Nordeste, além de áreas de Minas Gerais e do Espírito Santo, que fazem parte do semi-árido brasileiro.

Ao todo, foram construídas pelo programa 220 mil cisternas em 1.031 municípios da região, beneficiando 1 milhão de pessoas. O objetivo do projeto é chegar a 1 milhão de cisternas, atingindo 5 milhões de pessoas. - A intenção é conviver com a região por meio de organização política e de produção, afinal, os açudes são rasos e vão evaporando ao longo do ano. Eles também não permitem a distribuição de água, que é fundamental para a segurança alimentar. Com a cisterna permitimos a democratização desse bem - afirma o articulador da Asa, Lourival Almeida.

Na Escola Família Agrícola Dom Fragoso, a cisterna está vazia e aguarda o “inverno” no sertão, período de chuva, que com sorte vai de janeiro a maio. Enquanto, a cisterna está vazia, a água é captada de um açude, que presencia diariamente um belo espetáculo de pôr-do-sol. Hora em que as crianças descansam das atividades escolares e jogam uma pelada.

Mas aqui, os verdadeiros gols são feitos em áreas experimentais em que cada aluno produz uma cultura agrícola na comunidade onde mora e ajuda a colocar comida na mesa de casa. - Na minha casa não fazia nada, começamos a produzir verduras depois que vim para escola. Agora cada dia minha mãe inventa uma comida diferente – diz, com sorriso tímido, Jaciara Pereira Sousa, 12, aluna do 7º ano da escola.

As lições presentes nos livros didáticos, nas paredes, na lida do campo, na ideologia e no hino da escola, são decoradas pelos alunos e estão na ponta da língua: “A Escola é fruto da luta do povo que quer ver um mundo novo, que ninguém tenha mais fome. Hoje uma conquista nossa do trabalhador da roça que quer ser cidadão”.

*O jornalista viajou ao Ceará em novembro de 2007 à convite da Organização Não-Governamental Catavento, agência da Rede Andi Brasil no Ceará, para participar da “Oficina Itinerante Convivendo com o Semi-Árido”. Esta matéria e as outras produzidas sobre o assunto nunca foram publicadas no jornal em que trabalhava na época. Nenhuma justificativa plausível foi dada pela diretoria do impresso.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Próxima parada: Terminal Morenão

Esse lugar é o centro das contradições. É aqui que se mostra o preconceito, que se vive a diversidade, que não se respeita os direitos. É lá que se discrimina, que é possível ter alegrias e sofrimentos.

É por ali que passa a travesti indo para o trecho, a patricinha para a faculdade, o peão para a cidade, o hippie para o Parque de Exposições, a doméstica para a casa da patroa...

E acolá (bem em frente ao terminal), o grafiteiro colore o prédio abandonado, o bombeiro treina, o fanático prega, o carteiro seleciona correspondências, o mecânico se suja, o negro carrega caixas com verdura e a menina que terminou o Ensino Médio vende brinquedos.

A senhora tem a coluna encurvada, os cabelos brancos, os olhos claros. A pele branca é marcada por rugas. O único traço de beleza são os miúdos olhos verdes e a presilha que prende o coque: - É menino ou menina, ali de vermelho? – interroga, se atrevendo a interromper o silêncio e invadir o pensamento alheio.

- Menino – é a resposta. Ela se espanta e olha mais uma vez sacudindo a cabeça e sentenciando: - A gente vê cada coisa nesse mundo! Ela volta ao silêncio. A cabeça daquele que foi questionado fervilha: - É evangélica! – conclui.

O menino de camiseta vermelha tem cabelo curto, usa calção e chuteira e tem trejeitos masculinos. Está junto a um grupo de cinco meninos. Um deles é bem mais alto e se destaca do grupo. É magro e usa cabelo cumprido, boné e mochila. Eles não têm mais do que 16 anos. Outro é visivelmente extrovertido, falante e brincalhão. Ele faz “carinho” no menino de vermelho. Os cinco meninos atravessam o terminal conversando. O extrovertido massageia a mão do de vermelho. O gesto simples entre dois amigos escandaliza a velha. A camisa de uma deles denuncia: “handebol”. São meninos que jogam handebol e utilizam as mãos para as jogadas... Mas os olhos daquela senhora já estão gastos e viciados e não conseguem mais ver. No que ela enxerga, há diferença.

Cabelos exageradamente loiros, praticamente brancos. Muito escovado. O rosto exibe traços marcantes, rugas fortes e bem definidas. Com jeito sexy, se escora na barra do ônibus. As roupas são decotadas e chamativas. Tem mais de 50 anos, é negra e não poderia ser taxada de bonita. “É uma trabalhadora do sexo” – pela maneira que encara, pelo olhar lânguido e perdido, pela boca excessivamente vermelha, pelos seios apontando pela blusa sem sutiã...

O lobo-mau é fiscal no terminal. A rima não é intencional. Pedro cuida dos horários dos ônibus no Terminal Morenão, em Campo Grande. Nas horas vagas ele é o lobo-mau da peça “Chapeuzinho Vermelho”. Ele é ator, aqui é mais um que passa despercebido.

Outro usa gel, topete, tem olhos claros, cara de menino e lembra um amigo de infância. Também passa em meio as pessoas, organizando, anotando e se perdendo na multidão. Usam camisa azul e calça social preta. No meio da multidão que espera um ônibus, todos são mais um, na sua diferença e igualdade. Eu? Sou mais um deles.

Almoçando com Jesus

“Deus é fiel”, diz a placa com o nome da igreja. O prédio antigo e simples fica no Bairro São Francisco, em Campo Grande. O nome santo do bairro destoa de alguns seres que transitam por ali. A região precisa de preces constantes. Na Santa Casa, milhares de pessoas aguardam por um milagre. Assim como acontece no entorno do hospital, onde há clínicas, farmácias e lanchonetes frequentadas pelos enfermos.

Na igreja, um cartaz convida para orações diárias. Ao lado dela, um corredor leva a um salão nos fundos do templo. A calçada é irregular e já no início do trajeto uma mulher, que veste saia comprida e blusa sem decotes, parece se surpreender com os jovens que querem acessar o salão: “Vieram almoçar?”. Os dois amigos conversam animadamente e confirmam que sim.

Eles trabalham em frente a igreja e planejaram durante um bom tempo provar o “Almoço com Jesus” anunciado na placa em frente ao templo. Entram no salão, que fica nos fundos da igreja, e não parecem se abalar com o cenário de improviso. Continuam o papo sobre o cotidiano. São servidos em um prato de uma louça esmaltada, daquelas que não quebram, e quando fica velha começa a descascar no fundo. A comida parece uma papa. Nem lembram direito o que comeram. Ao lado deles, uma “irmã” puxa assunto. Ela é loira e tem a pele e a expressão desgastadas por anos vividos na rua. Recém-convertida, a mulher que já passou dos 40 anos, mistura as gírias da rua -“corre”-, com as expressões da igreja “tá amarrado, em nome de Jesus”.

Pronto. Encontraram o que queriam. Uma pessoa para bater papo e que expressa muito daquele lugar. O “Almoço com Jesus” é um chamariz para os moradores de rua, na sua maioria, usuários de drogas, irem até a igreja e se converterem. As refeições começam a ser servidas às 11 horas. Como já era meio-dia, não tinha restado mais ninguém no salão e também não tinha muita comida, mais isso era o de menos. Sentiram falta apenas das orações. Como não eram o público-alvo do almoço, os pastores parecem ter ficado intimidados com a presença deles. No entanto, os dois jornalistas sem religião não saíram do lugar sem o desejo de “vão com Deus, irmãos!”.

Agora, quando quiser almoçar com Jesus você já sabe que é só procurar a Igreja Mistérios da Fé – Deus é fiel, localizada no cruzamento das ruas Eduardo Santos Pereira e 13 de Maio, no Bairro São Francisco, em frente a Santa Casa de Campo Grande.

*Minha companheira na refeição com Jesus foi Marcelle Souza. O texto foi escrito em agosto de 2007, quando fomos a igreja.