terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Ana e eu*

Casada, um filho morto, pouco ou nenhum contato com o restante da família. Sentada, olha a paisagem urbana da região central de São Paulo como se fizesse parte dela. Aquela mulher não precisa mais do sobrenome. O nome é o resto de uma vida que ela tenta esquecer e prefere não contar: o passado sofrido. O marido, Cícero, diz que estão juntos há 20 anos, mas nunca conheceu seus parentes. Ela jura que os dois irmãos que vivem na capital paulista sabem de seu paradeiro.

Ana usa um agasalho para se proteger do friozinho sentido em uma segunda-feira de janeiro nublada e chuvosa, que parecia fazer tributo à cidade que comemora aniversário naquele dia 25. As unhas estão pretas de sujeira e os cabelos, brancos e despenteados – essa característica, ela resolve ao sacar um pequeno pente preto de sua bolsa e tentar desembaraçá-los, pelo menos até que assentem um pouco. Apesar de já passarem das 16 horas, devia ser a primeira vez que fazia aquilo no dia.

Para mim, não foi fácil chegar até ali. E foi mais difícil ainda conversar com ela. Em certo momento, deu vontade de chorar e fiquei com medo dos meus olhos me traírem. Depois pensei que a pena que ela despertava em mim não era benéfica para a matéria. Então quem era ela? Como sobrevivia? O que desejava? “Você tá me especulando da ponta do pé até o último fio de cabelo”, repetiu ela por três vezes, até eu conseguir entender o que falava. O barulho do trânsito constante aliado à sua voz baixa me impediram de entender muitas coisas do que disse. Minha opção de, pela primeira vez, fazer uma matéria sem anotar ou gravar nada, com medo de que isso pudesse atrapalhar algo, também me fez perder partes daquele diálogo.

Em meio à poluição sonora, a voz embargada, típica de quem já se abasteceu com o combustível daqueles que precisam inebriar a mente para sobreviver, dispara: “Eu bebo, mas não mexo com ninguém. Mas esse homem aí, ó. Esse aí...”, aponta, com mais raiva e quase me obrigando a olhar para trás e encarar seu algoz. Resisto à curiosidade e não o faço, com medo de uma represália do homem, primeiro coberto, depois prestando atenção no que conversávamos. “Esse homem aí me bate, me incomoda. Eu quero que tirem ele daí”, balbucia, repetidas vezes, até conseguir que eu dê atenção e registre mentalmente o seu anseio. Logo ela que se interessou tão depressa por mim.

Ao chegar, puxei assunto e Ana foi logo pedindo para ficar mais perto. Parecia esperar por meses. Todos aqueles em que ensaiei conversar com ela. Quando me aproximei, um cachorro preto me atacou. Eu estava na defensiva – foi o meu primeiro medo naquele lugar. Era uma cadela gorda, que latia e tentava alcançar minhas pernas. A mulher me defendeu com um gesto de “passa” e pediu para eu me sentar ao seu lado. Com o comando, a cachorra voltou a deitar no seu espaço, onde repousava até que eu ousei adentrar o território que tomava conta. Sentei bem no campo indicado pela mulher e, numa fração de segundos, a distância que havia entre nós virou poeira.

Pela primeira vez, estávamos frente a frente e nos encarávamos. Sem desconfiança ou receios, ela foi me contando sobre como era morar no número 340 da Avenida General Olímpio da Silveira. A localização em frente ao metrô Marechal Deodoro era estratégica. Afinal, a moradora do canteiro da avenida utiliza o banheiro do terminal para fazer suas necessidades.

A mulher miúda e de expressão cansada me olhava no fundo dos olhos. Antes de perceber os barulhos que invadiam aquilo que representava a sua casa, me incomodei com o cheiro do lugar. O papelão onde dormiam protegidos por caixas exalava odor de urina. O cheiro me incomodava, mas não parecia ser percebido por eles e aos poucos fui me adaptando também. Parcialmente coberta, ela dizia que não faltava comida. “Os moradores dos prédios e das comunidades ali da rua de trás trazem para gente. Isso não falta, não é problema”, reitera, garantindo que não passa fome.

Na boca, sobraram poucos ou nenhum dente. Ela engasga nas palavras e conta sobre os onze dias em que ficou internada no Hospital Sorocabano. “Fui picada por um inseto”, diz. “Era piolho de cobra. Ela ficou com a cara toda verde, demorou um tempão para sair”, complementa o marido. “Eu fiquei sozinho!”, conta. Foi num desses dias longos e tristes para Cícero que eu tentei falar com ela pela primeira vez. Naquele começo de noite de domingo, um mormaço quente brotava do chão como se reverberasse o sol forte que acabara de se esconder. Para mim era uma noite morna, uma amiga reclamou do calor e no outro dia no rádio, ouvi que foi a noite mais quente dos últimos 12 meses, algo como 31ºC.

Era 10 de janeiro, e ela não estava no lugar onde eu sabia que morava. “O que teria acontecido?”, pensei. Poderia ter voltado para casa ou ter sido vítima de um dos perigos iminentes da rua. Onde estaria? Perambulei de um lado para o outro da via até chamar a atenção dos moradores do canteiro da avenida, que carrega consigo o Elevado Costa e Silva. Levei uma encarada de um dos vizinhos de Ana. “O que foi?”, gesticulou ele, com braços estendidos, para mim, que, arriscava olhar para o lugar que entendia ser seu. Saí dali, antes que arranjasse confusão e fiquei com medo de nunca conseguir saber a história daquela mulher.

***

E pensar que na primeira vez que a vi voltava feliz para casa depois de lembrar de passar na minha padaria predileta e comprar os deliciosos franceses que davam mais sabor às minhas manhãs. Curtia a brisa de um fim de tarde bonito, após um dia de julho mais quente que o comum em São Paulo. Havia sido pouco produtivo no serviço, mas nem isso me incomodava mais. Caminhava pensando na vida, ziguezagueando pelos cerca de 20 quarteirões que separavam meu local de trabalho de casa.

Percebi que atravessava o trecho de uma rua que nunca tinha estado antes. Sorri internamente, pois gostava de transitar por novos lugares, ver novas paisagens. Quando entendi onde estava, vi que passaria pela lateral do metrô Marechal Deodoro e alcançaria a General Olímpio da Silveira, a umas cinco quadras do prédio onde moro.

Foi aquela senhora sentada ao lado da estação que me tirou do cerne. De olhar perdido e cheio d’água, ela parecia mastigar alguma coisa. A cena durou meros segundos, mas o tapa na cara foi tão forte que o senti por algum tempo. Havia caído do meu pedestal e me juntado a ela. Pensei que, como um personagem de Clarice Lispector, poderia nunca mais voltar a ser a mesma pessoa. Aquela imagem reverberaria por muito tempo na minha cabeça.

Enquanto, os outros moradores de rua pareciam não me sensibilizar mais – quase se encaixando no quadro que retratava meu cotidiano –, aquela senhora ali, indefesa, com um problema nos olhos, passando em silêncio por todos os terrores da rua, parecia ter gritado comigo. Não teria casa? Filhos? Alguém que a ajude? Dormiria aquela noite ali, sentada ao lado do metrô?

Tive vontade de pegar sua mão e conduzi-la até em casa. No caminho, nos apresentaríamos e saberíamos tudo o que é possível de uma vida em dez minutos. Longe da rua, limparia seus olhos com colírio e algodão, pentearia seus cabelos grisalhos e desgrenhados e esquentaria suas mãos frias e trêmulas. Ouviria suas histórias e conselhos de vó. Talvez colocasse a cabeça em seu colo e fecharia os olhos enquanto ela fizesse cafuné. Não fiz nada disso. Quando percebi, meus passos largos já tinham me afastado daquela senhora.

Pelo menos os pães poderia ter dado a ela. Nem isso. Quando o trajeto estava completo e, finalmente, passava manteiga em um deles para saboreá-lo, engoli-o, com desprezo de quem estava em dívida com alguém. Tinha vontade de fazer minha parte e despejar meu conta-gotas no incêndio que é a miséria em São Paulo. Naquela noite nada fiz.

No outro dia, acordei e, ao pentear os cabelos, era como se minha imagem refletisse a da velha. Cabelos desgrenhados, olhos cheio d’água, boca mascando. Estava fora de mim. Pisquei os olhos novamente, afastando aquela cena incômoda. Voltei para a rotina mecânica, tentando esquecer tudo o que aquilo representava. Até consegui durante metade do dia. Mas, depois do almoço, voltava para o trabalho, quando vi outro morador de rua que dormia sobre a mão calejada e estendida, como se pedisse esmola mesmo durante o sono. O contraste da sujeira negra dos dedos, da mão branca e suas marcas, trouxeram à tona todos aqueles sentimentos de novo. Tinha culpa engasgada em meu ser. Não teria jeito, precisava agir.

E, no caso de Ana, havia algo de ainda mais grave. Ela lembra minha avó (sua ternura e fragilidade). Uma dessas mulheres fortes e lutadoras do interior do Brasil, que superou a fome para viver hoje uma vida modesta, mas confortável. No entanto, poderia ser ela ali, ou você, ou eu... E isso me angustiava.

***

Passaram oito meses até que conseguisse encarar aqueles olhos e saber a resposta para algumas das minhas perguntas. Pela primeira vez, percebi que a vista direita estava encoberta por uma membrana azulada. “É por conta do bicho”, disse ela. O marido explicou que ela deveria fazer uma raspagem e que, com isso, voltaria a enxergar normalmente com aquele olho. “Eu preciso que marque o médico”, pede ela. “Já vieram te levar e você não foi”, rebate ele. “Foi o Ivo, um gordo da comunidade ali em baixo, mas eu queria ir direto pro hospital”, explica Ana. Cícero conta que um carro veio levá-la, mas que ela ficou com medo e pediu que voltassem no outro dia. Agora, Ana espera que a cirurgia seja marcada e diz que depois vai sair da rua. “Só estou esperando isso”, promete, como se tentasse convencer a si mesma.

“Eu não entendo por que ela não sai da rua”, desabafa Cícero. Ele repete a frase por mais duas ou três vezes enquanto conversamos. Conta que tem uma casa fechada em Mauá e que foram para a rua após uma cunhada “encrencar” com Ana. “Ela disse para eu arrumar uma mulher mais nova e que, enquanto estivesse com ela, não precisava voltar lá. Foi quando viemos para cá”, diz.

Sua barba branca e espessa, que cobre boa parte do rosto, está ficando amarela. A pele morena e queimada do sol sofre com as marcas do tempo e com as intempéries do clima. Ele tem cor de concreto. A mesma que Ana. A mesma que todos por aqui. O mesmo material que reveste o viaduto que os encobre, o canteiro onde dormem, os prédios que os cercam e o órgão que pulsa no peito de quem nem os percebe mais ali. Talvez por tudo ser da mesma cor, haja mesmo dificuldade em percebê-los. Talvez eu só tenha notado Ana por que, em meio a tanto concreto, seus olhos ainda brilhem, não por ainda ter a chama da vida dentro de si, mas por chorar a morte de cada dia.

Ela lacrimeja, enquanto Cícero diz que, por conta do barulho, “não dorme nem um segundo”. “O movimento diminui 70% a partir da meia-noite e às 4h30 já volta por conta dos ônibus”, constata. Ele revela que, se a mulher voltasse para a família, ele poderia ir para sua casa. “Não volto por dó dela. Meus parentes não sabem que estou aqui e não vou deixar ela sozinha”, declara.

O pranto de Ana é mais fundo. E ela o conta enquanto o marido atravessa a avenida. Não tem problemas em viver na rua, em beber seu corote, guardado nas caixas que a cerca, junto com um pote de comida e com a bolsa preta que ela tanto fuça. “Mas esse homem aí, ô, esse aí me enche o saco. Ele me violenta. Quero que o tirem daí”, repete, agora com voz embargada e choro de verdade. O homem gordo encostado em sua cadeira de rodas enferrujada olha com desprezo para ela. O ar agora exala dor.

Com aquele desabafo em voz mole, ela deixa transparecer claramente que está sob efeitos da cachaça. Eu, que tinha tantas dúvidas, tantas perguntas, observo a cena em silêncio. Ela também se cala e abaixa a cabeça. Como num filme, aquele quadrado de mundo para, enquanto o restante acelera. Ela se recompõe aos poucos, me encara e despeja: “E então, meu filho?!”. Era como se cobrasse uma explicação pelo motivo de eu estar ali. Ela, que lacrimejava o tempo todo, parecia envergonhada pelo seu choro, pedindo para eu dizer algo, invertendo o foco da situação.

Aos 70 anos, a mulher de pele negra e cor de concreto vê o mundo por meio de lágrimas. Vou trabalhar, volto da aula, passo para ir para um barzinho... Ela está sempre ali, sentada, cabelo despenteado, resignada no seu canto. Cícero se movimenta. Ora confabula com outros moradores de rua em frente à estação de metrô, ora ocupa diferentes espaços ao longo daquele grande viaduto em formato de minhoca.

Os vizinhos do canteiro também perambulam, esmolam, praticam pequenos furtos, fazem fogueiras. “A gente não se mistura muito com eles”, revela Cícero, dando a entender que o clima é de hostilidade. De repente, surge um deles com metade de uma melancia e oferece para o homem que Ana havia denunciado como seu agressor. Ele sacode a cara de lua cheia e se nega a comer. Outro homem surge e ordena: “Não joga, não!”. Sem cerimônia, toma a fruta do outro que mal consegue se equilibrar nas próprias pernas e ameaça a tombar. Novamente sinto medo. Eles poderiam me notar e questionar minha presença em seu território. Mas estão mais preocupados consigo mesmo, um em sugar as últimas gotas daquela melancia, e outro em prolongar ao máximo o calor que a cachaça lhe provocava naquele momento.

Quando o céu fica cor de chumbo ele também lacrimeja. Estava assim, naquela sexta-feira, 29 de janeiro, quando vou procurar Ana pela manhã. Provavelmente ainda não tinha bebido naquele dia e não estava para muito papo. Cícero havia saído. Como muitas mulheres, ela tinha que ficar em “casa” para cuidar do que lhe pertencia: alguns papelões, a bolsa, o corote de pinga e a marmita de comida. Não sabia dizer onde o marido tinha ido. Tento puxar papo falando do tempo. “Agora chove todo dia, né?”. Ela ergue os ombros, revira os olhos e se conforma. “Fazer o que, né?”. Seu único lamento naquela manhã é o olho que coça.

O incômodo é com o olho que não vê, mas enxerga. A cegueira branca está, na verdade, nos olhos de quem a vê, mas não a enxerga. A cegueira daqueles que veem muito e não captam nada. A escuridão cotidiana de pessoas que vivem numa cidade que padece com o excesso de tudo. De uma sociedade que não percebe mais o que está a sua frente. Assim, ficar ali exposta não a incomoda. Poderia até afetar a gente, afinal, é ela que nos observa o tempo todo.

“Cadê a menina que sempre está com você?”, questiona. Confuso, respondo: “Não sei”. Afinal, sempre a procurei sozinho e ela devia estar me confundindo com algum membro de entidades assistenciais que ajudam pessoas como ela. “Deu o cano”, respondeu ela, com sua voz de tom grave e rouco, que, aliada com a maneira malevolente da sua fala, lembra a da Elza Soares. A frase arrancou um sorriso do meu rosto e fez com ela própria sorrisse, pela primeira vez, tornando meu riso ainda mais sincero.

Ela balança a cabeça e cantarola. Ignora solenemente minha presença. Entendo o recado e apelo: “A senhora está precisando de alguma coisa hoje?”. Ela podia precisar de tanta coisa, todo mundo precisa... Mas com um semissorriso ela faz que “não” com a cabeça e eu me despeço.

Vou tentar achar a “comunidade” da rua de trás que lhe oferta ajuda. Na padaria em frente, o comerciante de meia-idade, branco e de olhos claros também usa um movimento de cabeça para responder que não sabe de nenhuma organização que ajude os vizinhos. No comércio ao lado, a jovem loira é mais simpática. Ela até sorri. Mas também não conhece entidades ou pessoas que ajudem os moradores do Minhocão. A atendente também não sabe quem é Ana. E ela está logo ali, antes do fim do horizonte visto de seu balcão. “Eles incomodam vocês?”, interrogo. “De jeito nenhum, principalmente os daqui da frente”, analisa, prontamente. Percorro a Brigadeiro Galvão, “a rua de trás”, e não encontro nenhuma pista de organização governamental ou não governamental que ajude pessoas em situação de rua.

No dia seguinte, a tarde cai nublada e triste, sem muito a oferecer além de uma gostosa brisa. “Eles vem de turminha numa perua”, conta Ana, dando mais detalhes das pessoas que lhe trazem comida. Naquele sábado (29), no entanto, eles não tinham passado ainda. Antes que eu me penalize por ela, a mulher lembra: “Todo mundo aqui não comeu”, diz, apontando um a um daqueles com que dividem o mesmo espaço.

De repente, Cícero, que estava sentado perto do homem que “amola” a mulher, se exalta com algo. Ela pede desculpa para mim e solta em voz alta e forte. “Não é empregado de ninguém! Quer fazer os outros de empregado, esse miserável aí”, diz apontando novamente aquele homem negro e de barba por fazer que vive a menos de dois metros dela. Gordo e com má formação nas pernas, ele tem dificuldade de locomoção. Compro fácil o ódio de Ana, afinal ele tem cara de mau. “Nunca fez nada. Ela que é xarope, cabeça de cobra”, defende Cícero, com a naturalidade de quem sabe com quem está lidando.

Não entendi por que discutiam e Ana mudou de assunto. Contava agora que o marido ganha “uns trocados” trabalhando para barraquinhas de frutas e importados da China que ficam na rua ao lado do metrô. “Ele ajuda a limpar, trocar dinheiro. Faz tudo”, afirma. Segundo ela, os dois estão juntos desde “16 de julho de 99”. “Faz as contas aí”, pede. São quase onze anos de convivência, nove a menos do que o marido declara terem.

“E vocês se dão bem?”, pergunto. “O problema é só esse aí”, faz gesto com a cabeça apontando novamente o homem com jeito de ruim e emenda: “o resto tá tudo bem”. Ninguém mexe com ela e Cícero, lembra. Questiono, então, o que Ana sonha para o futuro, e sem pestanejar demonstra sintonia com a sociedade que a cerca: “eu quero dinheiro!”. Faz movimento de circunferência com os dedos, para contar que identidade, CPF e carteira de trabalho foram roubados. Ela lembra que já conseguiu o registro de nascimento e que agora pretende tirar novamente o restante dos documentos para conseguir receber sua aposentadoria.

Meu coração acelera e me bate uma tristeza. Meus olhos me traem. Agora, sou eu que lacrimejo. Talvez chorar me fizesse bem, mas não me permito tanto. Nem sei ao certo por que me emocionei naquele momento. Talvez por todos os silêncios que ela me provoca. Talvez pela necessidade de alguém ali chorar um sentimento, já que suas lágrimas eram decorrentes de um problema físico. Um sentimento, como escreve Clarice Lispector, de que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir.

Eu, que senti dó pela sua cara de carente e me culpei por não ter feito nada por meses, percebia que talvez quisesse ajudá-la por querer ficar bem comigo mesmo e não porque quisesse vê-la bem de verdade. Agora, eu me doía por ter sua própria história e não se contentar com a que eu imaginei para ela.

A dessa mulher que hoje traja calça jeans, blusa rosa e meia começou em Morro Agudo, no interior paulista. “Todo mundo chama lá de Agudos”, ressalta. Quando veio para São Paulo, morou na Vila dos Remédios e casou-se pela primeira vez. O filho nasceu com problema do coração e morreu aos dois anos. As reticências com que resume a história fazem com que ela se esgote antes dos nomes, datas e detalhes.

Volto a perguntar sobre a “comunidade” que a ajuda. “Fica na Rua Vitorino Carmilo. Fiz exame lá uma vez”, relata. Hoje o olho “dói e coça” e os remédios que recebeu no hospital foram roubados. Ivo, o homem gordo que presta auxílio às pessoas em situação de rua, a visita todos os dias. “Estou esperando ele me levar para o hospital”. A tarde cai e, em poucas horas, irá escurecer. Agora que sei o nome da rua da comunidade, resolvo procurá-la novamente. “Tenho que ir. Tudo de bom para a senhora”, desejo do fundo do coração, como se aquilo realmente fosse possível. “Para você também”, devolve ela.

Passava das 19 horas e as portas metálicas daquela rua estavam todas abaixadas. Pouca gente circulava pela via, que percorro até o fim. Moradores das casas e das calçadas, comerciantes, transeuntes, ninguém conhece a entidade que ajuda as pessoas que moram no Minhocão. Sem nenhum sinal, volto, indo para o lado contrário da rua. Encontro uma unidade de Assistência Médica Ambulatorial, a AMA de Santa Cecília. Está fechada, só atende nos dias de semana. Será que eles fariam trabalho assistencial também? A unidade está em reforma e nenhum guarda toma conta do local.

A dúvida dura poucos minutos. A uma quadra dali, há o Pronto-Socorro Municipal da Barra Funda, onde resolvo adentrar para me informar na recepção. “Você tem que procurar a AMA durante a semana. Lá eles devem fazer esse trabalho, mas aqui atrás também tem um órgão que ajuda esse tipo de moradores”, responde o atendente, dando a primeira pista do dia. No número 40 da Rua Albuquerque Lins, uma fachada de tijolinhos a vista, esconde uma garagem onde Kombis brancas estão estacionadas e um grupo de quatro pessoas de jaleco conversa.

Por uma janela, pergunto ao guarda o que funciona ali, e ele confirma. “É um órgão do governo em que médicos e enfermeiros se reúnem para atender os moradores de rua”. Pergunto se o Ivo trabalha com ele e responde que não o conhece. Peço para entrar e falar com uma daquelas pessoas. O guarda pergunta quem sou e me apresento como jornalista. Ele mesmo vai falar com o grupo e volta analisando minhas roupas. “Você tem que procurar a Secretaria de Saúde. Aqui não podemos passar nenhuma informação”, diz, com um sorriso malicioso que parece pensar que aquele sujeito de chinelo Havaianas, short casual e camiseta vermelha não é jornalista coisa nenhuma.

Agradeci e fui embora dali, com a sensação de ter morrido na praia. Voltava cabisbaixo em direção ao elevado. De fora devia parecer um sujeito excêntrico. Jovem, migrante, cheguei em São Paulo há menos de um ano, vindo de uma família simples de Campo Grande (MS). Ainda me impressionava com a pequenez e com a grandeza dessa metrópole. Os tipos humanos e as disparidades sociais, que outrora me levaram a escolher o jornalismo como profissão, agora recheavam meu cotidiano de morador de um bairro de classe média alta, localizado ao lado de um viaduto, que abriga parte da extrema pobreza da cidade. Minha rotina estava tomada por contradições.

De uma das calçadas, um homem interrompeu meus pensamentos e me pediu dinheiro para comprar comida. “Não tenho”, afirmei com tanta sinceridade que ele agradeceu. A poucos metros dali, um churrasco desses que têm mais cheiro do que consistência cruzou minhas narinas. Com meu bloquinho pressionado contra o queixo, estava de volta a Avenida General Olímpio da Silveira.

Ali, há grafites elaborados nas colunas de sustentação do viaduto, que delimitam o quadrado dividido entre Ana e outras dez pessoas. Uma cara com grandes olhos exibe palavras representativas para o local "socorro", "corrupção", "povo", "loucura", "cegueira", "vazio" e "desprezo".

Do outro lado, uma cabeça azul é servida em um prato. O sangue do desenho escorre, enquanto um garfo e uma faca se preparam para saboreá-la. Dessa cabeça, surgem outras, num emaranhado de imagens, das quais se destacam as palavras: “eu tenho vergonha do Senado brasileiro” e “cidade desigual”. Assinadas por “mundano”, as figuras são o único lampejo de uma área que perdeu o colorido para desafogar o trânsito.

Os prédios antigos e imponentes do entorno estão sujos e há anos não recebem um trato. Ao invés de tinta, são recobertos por mofo e pichações. Lugar de gente que decidiu abandonar a vida social como conhecemos e da sociedade corresponder com descaso. No meio dessa falta de cuidado há muita história, e ela só existe por que ainda resta vida.

No dia seguinte, volto ao órgão governamental que atende pessoas em situação de rua. Ao me apresentar como morador da região, fui melhor atendido. Apesar de ter passado o horário de ir embora, uma das enfermeiras me recebeu. “Você também é morador de rua?”, perguntou ela. Negro, barba e roupas simples. Assim eu poderia ser descrito naquele fim de tarde, assim são também todos aqueles que moram em volta de Ana. Ela tentava me jogar à margem. Pela primeira vez, me senti como se estivesse do outro lado. O olhar de desprezo dela diminuiu quando retomei minha posição e respondi um “não” seco. Meu medo inicial poderia ter razão e aquela pergunta ecoou dentro de mim por algum tempo.

A enfermeira atendia a área da República, não conhecia nenhum Ivo e não sabia quem era Ana. A mulher anotou o que relatei em uma folha sustentada por uma prancheta. Comprometeu-se em visitar o lugar indicado no próximo dia de trabalho e procurar aquela senhora com problema nos olhos.

O atendimento assistencial especializado existe, mas será que funciona? Mesmo não sendo tão omisso quanto pensei, o Estado atendia, mas não sabia quem eram aqueles humanos com que lidava. Não tinham rostos, histórias e nomes. Pessoas para quem o significado de Estado não faz mais diferença, assim como também não importa de onde saem quem os atendem, os números, as datas e uma série de burocracias e objetividades adotadas por aqueles que precisam do concreto para ter certeza do que é real.

Minha angústia poderia ser resolvida acompanhando o caso, como se o problema de Ana estivesse em seus olhos. Se eles parassem de chorar, talvez eu não me incomodasse mais, finalmente aceitando sua posição de Não Ser e de perdê-la no meio dessas pessoas invisíveis e cor-de-concreto. Talvez por ela parecer um dos meus e eu parecer um deles, eu continuarei sentindo algo cada vez que passar por ali.

Ana continuaria ignorando meus sentimentos. Ela é uma mulher que não precisa de minha piedade ‘bondosa’, da minha interferência ou ajuda. Do alto do seu livre arbítrio, ela me fez entender que pode sim morar embaixo do minhocão, chorar copiosamente, viver suja e despenteada e levar dias melhores do que se tivesse em uma casa com a família. O que havia causado o rompimento? Ela tinha o direito de não dizer a um estranho. Devia ter razão em não querer lembrar ou saber se realmente ocorreu algo que a levou para a rua ou simplesmente decidiu chorar seus dias ali.

Ela até permitia que mais gente acompanhasse suas lágrimas, mas sem que precisássemos também chorar por ela. Com Ana, talvez esse tenha sido meu erro, precisava de um expoente para extravasar a tristeza que a cidade me causava, mas ela não aceitava estar nessa posição. Chorava, mas gozava do seu cigarro, da sua pinga, do seu homem, e sobrevivia às mudanças de tempo na rua com o que lhe restou de dignidade – e para ela, aquilo era muito. Ela não precisa de mim, nem de você. Ana, que agora descubro ser Pereira, é ela, com sua vida, seu mundo e suas lágrimas.

*Essa matéria foi produzida como trabalho da pós-graduação em Jornalismo Literário, da Academia Brasileira de Jornalismo Literário, e publicada no site Texto Vivo: http://www.textovivo.com.br/detalhe.php?conteudo=fl20101210165935&category=autobiografica

Confira os bastidores deste ensaio no meu outro blog.