segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Lírico, documentário revela Manoel de Barros biológico


Diretor diz que precisa de apoio local para filme ser exibido em Campo Grande

Após três anos de produção, onze cortes e exibição na Mostra de Filmes Internacional de São Paulo em 2008, o filme “Só Dez Por Cento É Mentira”, sobre a vida e obra do poeta Manoel de Barros, teve sua pré-estreia na última quinta-feira (14) em São Paulo. Mas, por enquanto, os telespectadores sul-mato-grossenses não poderão assistir ao filme. Ele estréia apenas no Rio de Janeiro e em São Paulo no dia 22 de janeiro e espera a aceitação do público dos dois maiores centros do País para garantir recursos para ir às outras capitais.

Em Campo Grande (MS), cidade do poeta, no 7º Festival de Cinema que começou sexta-feira (15), nenhum sinal da poesia e da obra sobre de Manoel. “Não tem previsão, não tem dinheiro para isso. Falta convite, vamos ver se acontece”, esquiva-se o diretor Fábio Cézar, sobre a possibilidade de exibição na Capital. Ele afirma que, com poucos, recursos seria mais viável a exibição do longa no formato digital. “Até onde sei não existe uma sala com essa possibilidade na cidade. Teria que haver uma projeção em outro espaço, mas para isso precisa de interesse das pessoas de lá”, diz.

Enquanto a viabilização para exibição da produção em Campo Grande não se concretiza, o documentário revela o ser biológico escondido pelo poeta para paulistanos e cariocas. Um filme que segue o manual de Manuel. “Há várias maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira”, revela uma das passagens.

Com imagens lúdicas, personagens inventados e trilha sonora própria, o documentário embarca nas palavras do poeta e se inspira nela para inventar personagens. Não é um documentário sobre a poesia de Manoel, mas sim, com a sua poesia. Há nele, o inventor de objetos e o guia turístico corumbaense, interpretados por atores que simulam fabricar esticador de horizontes ou guiar turistas pelas paisagens inventadas pelo poeta na cidade pantaneira. E que ao final, se descobre que não passa de um engodo. Um lírico e perspicaz engodo, mas um engodo.

Talvez venha daí a discussão se o filme é documentário. “É apenas um filme”, repete o diretor, com medo de que o rótulo “documentário” espante o público. “Ainda há um estigma, quando se fala que é documentário, as pessoas imaginam algo da TV Cultura. Esse é um filme lírico que tem como protagonista a linguagem e gostaria que assim fosse chamado: "filme”, completa Pedro Cézar.

No “filme”, o diretor começa revelando como conseguiu contato com Manuel, conhecido por sua aversão às entrevistas. “Passei vários dias em Campo Grande tentando falar com ele. Ele pedia que eu fizesse o filme baseado na sua obra, dizia que o ser biológico não interessa, só o letral. Eu respondi, que era só um sonho. Foi quando ele fez um silêncio e topou conversar comigo”, narra o diretor enquanto imagens do céu visto do alto da Avenida Afonso Pena ilustram a tela. A grandiosidade do pôr-do-sol campo-grandense contrastam com aquilo que o autor escreve. “Só as coisas rasteiras me celestam”, diz um dos trechos citado no filme para lembrar que suas palavras se dedicam à pequenez das coisas miúdas.

Quando fala, Manuel justifica sua aversão às entrevistas. “Eu falo e escrevo absurdez. A palavra oral não dá rascunho”. Arredio como uma criança arteira, o poeta lembra que sua inspiração remete a essa fase. “É dela que vem as primeiras sensações, os primeiros ruídos. Só tive infância”, ressalta. Ele lembra que sua obra não é biográfica e que só possui imagem inventada. “Só tenho uma coisa a dizer: 90% do que escrevo é invenção, só 10% é mentira”, escreve, dando deixa para o nome do filme que o retrata. E para quem tenta interpretar o que escreve, ele adverte: “Poesia não é para compreender é para incorporar. Razão é a última coisa da poesia”. Com sua simplicidade peculiar, o poeta diz que não que dar aos leitores informações, mas encantamentos. “Quem descreve não é dono do assunto, quem inventa é”.

Manoel conta que pôde se dedicar integralmente à escrever quando conseguiu viver dos rendimentos de sua fazenda no Pantanal. “Comprei o ócio e virei vagabundo profissional”, diz. Ele acredita que a poesia é a “virtude do inútil” e jura que não sabe o que é inspiração. “Sou procurado pelas palavras, que se apaixonam por mim. Só conheço inspiração pelo nome”, revela. No “lugar de ser inútil”, como denomina seu escritório, Manoel se abre em risadas e mostra os poemas. “É pra isso que eu presto”.

Para os que dizem que seus versos retratam a natureza e o Pantanal, ele rebate afirmando que não é poeta de paisagem, ecológico e que não quer fazer folclore. “Poesia é filha da linguagem não da paisagem, eu invento o meu Pantanal”, diz. Também lembra que seus poemas não formam um soneto e não fazem rima, mas são especialistas em fazer “coisificação do ser, humanização das coisas e vegetalização do ser”.

Entre a revelação de que toma uma dose de pinga ou whisky diariamente, o ser biológico lembra da admiração por Charles Chaplin. “O vagabundo de Chaplin é o herói do nosso século, o desheroi”. Mas o alterego do poeta é Bernardo, caboclo que trabalhou nas fazendas de Barros, personagem presente na sua obra. “Bernardo é quase árvore, o silêncio dele é tão grande, que os passarinhos ouvem de longe”, escreve. Noutra poesia, torna a versar sua admiração pelo pantaneiro. “Pode um homem enriquecer a natureza com a sua incompletude?”

No documentário, o admirador de deseheróis inspira e arranca depoimentos apaixonados da poeta e atriz Elisa Lucinda, do cineasta Joel Pizzini, dos filhos Martha Barros, ilustradora dos livros do pai, e João Wenceslau, morto em acidente de avião, e da mulher, Stella Barros. Eles falam de um Manoel que gostaria de ser lembrado como poeta por considerar que só sua poesia pode salvá-lo da perenidade biológica. E é dela que vêm os melhores silêncios provocados pelo filme.

O tempo só anda de ida

Me procurei a vida inteira e nunca consegui encontrar
- pelo que fui salvo

Imagens são as palavras que nos faltaram

Repetir, repetir até ficar diferente
Repetir é dom do estilo

Olho vê
Lembrança revê
Imaginação transvê
O mundo precisa transver

[Correio do Estado/18/01/2010]